Entre Ilhas: intercâmbio de arte e cultura popular no Brasil | LUCILA VILELA e JOSIMAR FERREIRA

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Florianópolis e Parintins. Duas cidades conhecidas como “Ilha da Magia”. São 2.907 km que as separam; uma ao sul e outra ao norte do Brasil. Florianópolis é uma ilha que fica no meio do Oceano Atlântico, é a capital do Estado de Santa Catarina. Parintins é uma ilha que fica as margens do rio Amazonas, a 420 quilômetros de Manaus, no Estado do Amazonas.

O projeto “Entre Ilhas” surgiu para tentar estabelecer um diálogo entre estudantes dessas duas cidades. O projeto foi uma iniciativa de dois professores: Lucila Vilela (Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC) e Josimar Ferreira (Universidade Federal do Amazonas-UFAM).

O intercâmbio cultural aconteceu no ano de 2022, no curso de Graduação em Artes Visuais,  envolvendo as disciplinas: "Criação da Forma Tridimensional" (ICSEZ/UFAM), "Poéticas do Desenho" (CEART/UDESC) e “Representações Pictóricas” (CEART/UDESC). 

A proposta foi a realização de duas pinturas murais abordando a cultura popular amazonense e catarinense, construindo uma ponte arte/afetiva entre ilhas, com lendas e mitos entre o imaginário norte/sul brasileiro.

A turma da disciplina "Poéticas do Desenho" (CEART/UDESC) realizou um projeto de mural para ser executado pela turma de "Criação da Forma Tridimensional" (ICSEZ/UFAM). E a turma de "Criação da Forma Tridimensional" (ICSEZ/UFAM) realizou um projeto de mural para ser executado pela turma de “Representações Pictóricas” (CEART/UDESC).

Assim, cada cidade deixou sua marca levando um pedacinho de sua cultura para outro canto do país.

 

Mural Entre Ilhas - CEART/UDESC
Mural Entre Ilhas - CEART/UDESC


Mural Entre Ilhas - ICSEZ/UFAM

   

O tempo do rio e o tempo do vento

Como todo projeto coletivo, muitos conflitos surgiram no meio do caminho. A primeira dificuldade, que se deu logo de início, foi o anacronismo.  Devido ao calendário acadêmico afetado pela pandemia COVID-19, os semestres entre as turmas de 2022 não coincidiram. Quando um estava acabando, o outro estava começando e assim por diante.

Percebemos que estávamos lidando com o tempo do rio (Parintins) e o tempo do vento (Florianópolis).

O semestre na UDESC começou antes e quando a turma de “Poéticas do Desenho” entregou o projeto de mural para a UFAM, o semestre deles ainda estava começando. E ainda, logo no início, foi interceptado pelo grande acontecimento da cidade: o Festival de Parintins.

 

O Folclore

O Festival Folclórico de Parintins, uma das maiores festas regionais do Brasil, começou oficialmente em 1965. Desde então, o evento se repete todo mês de junho. O festival acontece com uma rivalidade iniciada há quase cem anos, quando dois grandes grupos – os “bois” – começaram a representar nas ruas de Parintins o folclore do boi-bumbá, uma variação do bumba-meu-boi nordestino. O boi Garantido, que usa o vermelho, é conhecido como “boi do povão”, por ser bem popular e manter o ritmo tradicional das músicas típicas. O boi Caprichoso, adepto do azul, é o boi azul e branco e tem canções menos tradicionais, mais modernas.

Com fantasias, músicas e alegorias, os bois encenam a lenda de Catirina, que diz o seguinte: uma roceira está grávida e tem desejo de comer língua de boi mais bonito da fazenda. Para satisfazê-la, seu marido, Pai Francisco, sacrifica o boi favorito da sinhazinha e por isso o patrão ameaça matar o coitado. Quem salva tudo é um pajé, que ressuscita o boi e garante um grande final de festa.

Quem mora em Parintins vive a cultura no dia-a-dia.  A cultura popular está presente nas cores da cidade, nas conversas entre os habitantes, no comércio e nas casas.

 


Festival de Parintins - Boi Caprichoso


Festival de Parintins - Boi Garantido


Bumbódromo - Parintins/AM

 

Diferente de Florianópolis que tem uma relação local com o folclore do boi de mamão. Enquanto o festival folclórico de Parintins envolve a cidade inteira com uma produção gigantesca; as manifestações do boi de mamão seguem timidamente em pequenos eventos de bairro.

O Boi de Mamão é uma brincadeira. A dança é considerada uma das tradições folclóricas mais antigas de Santa Catarina. Muitas semelhanças são vistas entre o Boi-de-Mamão e o Boi-Bumbá, ou o Bumba Meu Boi.

A história conta o desespero de Mateus, um vaqueiro simples do interior da Ilha, que, ao ver seu boi de estimação morto, busca um médico e um curandeiro para ressuscitá-lo. Ao fim, o boi volta à vida e todos comemoram com cantorias e danças. Durante a encenação, várias personagens aparecem.

Quando o projeto Entre Ilhas começou, uma das grandes discussões na turma da UDESC, foi a falta de contato com o folclore, pois a grande maioria dos estudantes  vinha de outras cidades do Brasil. Apenas dois eram “manezinhos da ilha”.

Um debate sobre o que é folclore, o que é cultura popular e o que representa a cidade foi o ponto de partida para a composição do desenho.


Boi de mamão - Florianópolis/SC


Boi de mamão - Florianópolis/SC


Bernunça - Florianópolis/SC

       

Os desenhos

O primeiro projeto a ser entregue foi de Floripa para Parintins. O desenho apresentou alguns elementos da ilha: a Bernunça (personagem do boi de mamão) ocupou o lugar central, engolindo a ponte Hercílio Luz. A Bernunça, como diz a música “ é um bicho brabo/já engoliu mané joão/come pão, come bolacha/come tudo que lhe dão.”

A composição ainda apresentou as praias, o mar, as inscrições rupestres, o pássaro Martim Pescador, as Tainhas, o pescador, as pedras de Itaguaçu, os sóis do Meyer Filho, os Garapuvús e a Figueira.

Em seguida a turma de Parintins enviou o desenho para Floripa. A composição foi feita em quatro partes, respeitando o mapa das paredes. Na parte de cima os dois bois: Garantido e Caprichoso, nas cores vermelha e azul. Embaixo uma Vitória Régia em forma de paleta e a igreja de Parintins na cores amarelo e ocre. Ligando a composição, a cobra grande feita com grafismos indígenas.


Desenho da turma "Poéticas do Desenho" - CEART/UDESC


Desenho da turma
"Criação da Forma Tridimensional" - ICSEZ/UFAM

   

A igreja

Quando o desenho chegou na Udesc, os estudantes ficaram encantados com as cores e com a composição, mas um elemento causou incômodo: a igreja.

A maioria da turma questionou a presença da igreja como um símbolo colonizador. Para o olhar do sul, a igreja vinha carregada de histórias e barbáries decorrentes do processo de colonização, como o discurso da conversão dos indígenas para assimilar costumes europeus e com isso induzir ao trabalho escravo. A tentativa de conquista espiritual, cultural e territorial das populações indígenas por parte dos colonizadores resultou em processos de etnocídio e genocídio de centenas de grupos. Colocar uma igreja na porta do prédio das Artes Visuais do Centro de Artes da Udesc não agradava a ninguém.

Por outro lado, no olhar do norte, a igreja tinha suma importância. Era patrimônio histórico da cidade e parte da origem do Festival do Parintins. Seria uma ofensa retirar da composição. A Catedral de Nossa Senhora do Carmo é um símbolo de Parintins e foi tombada por sua importância cultural pelo Conselho Estadual de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Amazonas (CEDPHA). É também símbolo de fé e devoção a Santa do Carmelo e foi inaugurada em 1981 após uma campanha de arrecadação de fundos para a sua construção. Foi essa campanha que originou o Festival Folclórico de Parintins, realizado pela primeira vez em 1966, com o objetivo de conseguir recursos para a construção da igreja.

Depois de algumas discussões em torno do tema, a turma da Udesc então compreendeu a importância da igreja como patrimônio histórico e como origem do Festival e decidiu manter na composição.


Mural - Pintura da Igreja

 

Nesta parte do processo, ficou estabelecido que poderiam ser feitas mudanças nos desenhos caso fossem necessárias.

Na composição de Florianópolis não houve embate conceitual, mas sim formal. Os estudantes de Parintins reformularam o desenho transpondo os elementos para a linguagem da pintura mural. Não houve conflito e a aprovação foi unânime por parte dos estudantes da Udesc.


Desenho da UDESC modificado pelos estudantes da UFAM

 

As paredes

Os departamentos das duas universidades – UFAM e UDESC -  apoiaram o projeto cedendo paredes do campus para a realização do mural.

Na UFAM, foi cedida a parede da antiga Ufamzinha que, na metade do processo, por estar em estado de ruína, teve que mudar. Então foi necessário a escolha de uma outra parede. A nova parede foi escolhida no prédio do campus-estrada, prédio oficial onde está a diretoria, auditório e salas de aulas. Uma parede reta e retangular relativamente simples de transpor o desenho.

A parede escolhida na UDESC, no entanto, apresentou dificuldades para  execução. Foi escolhida a fachada do prédio das Artes Visuais: quatro paredes angulares e divididas ao meio por uma forma tridimensional.

A forma das paredes acabou dificultando a fidelidade ao desenho. Devido à um problema de continuidade visual da cobra, o desenho teve que ser modificado. Depois de muitos esboços e tentativas de solucionar o problema, houve uma sugestão vinda de Parintins de inverter a composição. Para eles evidentemente isso não se aplicava às cores dos bois. Mas o que era óbvio para Parintins, não era para Florianópolis. E a turma fez os bois invertidos. Então quando o processo foi mostrado causou o maior alvoroço!


Desenho da UFAM invertido


Pintura em proceso na UDESC

        

As cores

As cores dos bois invertidas eram um disparate! Foi preciso explicar para a turma de Florianópolis, a suma importância das cores estarem do lado certo: vermelho na direita e azul na esquerda.

Isso porque a cidade inteira de Parintins é dividida por uma linha imaginária que vai da Catedral de Nossa Senhora do Carmo ao Centro de Convenções Amazonino Mendes (Bumbódromo), criando duas zonas: uma Azul (Boi Caprichoso) e outra Vermelha (Boi Garantido). As pinturas das casas, as placas indicativas, as faixas de pedestres e os bancos da cidade, tudo na cidade respeita a divisão das cores.

Assim, apesar de já terem iniciado o processo de pintura, a turma da Udesc resolveu apagar e consertar o lado das cores, entendendo a questão significativa que envolvia o lado dos bois. Mexer com boi é coisa séria.

 


Conserto das cores - UDESC


Alteração da pintura - UDESC


Cidade de Parintins/AM

    

As tintas

Para a realização dos murais, a compra das tintas era fundamental. Na Udesc, o departamento de artes visuais conseguiu fornecer as tintas que os estudantes precisavam. A Ufam, no entanto, não conseguiu obter verba para isso, contribuiu com uma lata de tinta branca para iniciarmos o traço na parede. Então, depois de muitas tentativas de apoio com a universidade e com artistas locais, os professores Josimar Ferreira e Fabiana Wielewicki abraçaram o projeto com parte dos membros do Colegiado de Artes Visuais do ICSEZ/UFAM patrocinando as tintas e os materiais básicos.

 

O tempo do vento e o tempo do rio

Com isso, a pintura mural da Ufam acelerou. E o vento sul bateu em Parintins. Foi impressionante a velocidade com que os estudantes da turma de Criação da Forma Tridimensional fizeram o mural. O empenho foi enorme! Foram 15 dias de trabalho intenso. Dia e noite.

No dia 22/09, junto com a comemoração de 15 anos do ICSEZ/UFAM (câmpus de Parintins), foi inaugurado o mural de Parintins. O evento contou com a presença do reitor do câmpus de Manaus Dr. Sylvio Mário Puga Ferreira e da diretora do câmpus de Parintins Dra. Sandra Helena da Silva, além dos professores do Colegiado de Artes Visuais e dos demais professores do ICSEZ/UFAM e discentes da instituição.


Inauguração do mural Entre Ilhas - ICSEZ/UFAM - Parintins/AM

Enquanto isso, a turma da Udesc seguiu o ritmo do rio, e continuou a execução da pintura nos horários semanais de aula. A pintura da UDESC foi inaugurada no dia 14/10. No evento estavam presentes Elaine Schimidlin (coordenadora do departamento) e Sandra Favero (coordenadora pedagógica) que desde o início apoiaram e confiaram no projeto.

 


Inauguração do Mural Entre Ilhas - CEART/UDESC - Florianópolis/SC

A realização

Realizar um projeto com essa dimensão foi desafiador. Quando lançamos a proposta não imaginávamos o trabalho que estávamos prestes a conduzir. Foi durante o processo que tivemos a noção do que tínhamos inventado. Foram muitos diálogos, conversas, discussões que envolveram desenho, pintura, arte e cultura popular. O processo foi enriquecedor e o resultado foi surpreendente. No diálogo Norte/Sul percebemos as diferenças culturais que compõem um país tão rico em sua diversidade. Tudo tão longe e tão perto.

 

ENTRE ILHAS:

Intercâmbio cultural entre as universidades:
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina e UFAM – Universidade Federal do Amazonas

 

Disciplinas:
"Criação da Forma Tridimensional" (ICSEZ/UFAM)
"Poéticas do Desenho" (CEART/UDESC)
“Representações Pictóricas” (CEART/UDESC)

 

Professores:
Dr. Josimar Ferreira
Drª Lucila Vilela

 

Apoio/Agradecimentos:

Elaine Schimidlin, Rodrigo Nunes Vitório, Sandra Favero  (Florianópolis)
Fabiana Wielewicki, Kedson de Oliveira, Sandra Helena da Silva (Parintins)

 

Estudantes CEART/UDESC:

Poéticas do Desenho

Ana Carolina da Silva Ribeiro
Chiara Iglecio Cozzolino
Eschley Dutra Ferreira (Pagu)
Gabriele de Almeida Honorio
Giwa Coppola
Isadora Moreira Henslin
Karine Antunes
Letícia Villafane
Ligia Cristina de Brito
Luana Gonçalves Santana
Lucas de Abreu Seara Polidoro
Maria Paraíso Tambke
Mariah Fonseca Alves
Pedro Castilho Pereira
Vanessa Estrela Rodrigues da Silva 

 

Representações Pictóricas

Bárbara Rayol de Almeida Braga
Bárbara Reis de Castilho
Daphne Savi Moreira
Henry Matos Tavares
João Otávio Goulart
Kirian Hansch
Laura Leite Ricardo
Maju Poggio
Mário Soares da Costa Junior
Noah Espíndola
Oli Meyer Hollerweger
Sofia Fontanella Bertoncini 

 

Estudantes ICSEZ/UFAM:

Criação da Forma Tridimensional

Ana Beatriz Lucas Couto
Antonio dos Santos Fuziel Junior
Claudomiro Batista Sales
Dayane Cruz Pimentel
Deinerson Silva de Souza
Endel de Azevedo Leal
Erika de Melo Ribeiro
Liandra Garcia da Paz
Lilian Lira Santos
Lucas Fonseca de Vasconcelos
Renan de Castro Souza
Renan dos Santos Oliveira
Talia Lorena Martins Barbo
Wesley Andrade de Souza