Antes-Tempo: Uma Bruma-sobre-Memória | CAROLINA VOTTO

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Colecionar fotos é colecionar o mundo.
(Susan Sontag)


Lela Martorano. Antes tempo, 2018

Uma tarde fria de inverno ao poente da serra catarinense um senhor muito elegante e com traços serenojoviais se aproxima da casa do saudoso prefeito Gregório Cruz situada no centro da cidade de São Joaquim. Lugar conhecido pelas temperaturas gélidas, estradas curvilíneas de planícies carregadas de pomares expressionistas. Neste lugar Roland Barthes adentra a Exposição Antes-Tempo da artista catarinense Lela Martorano. Já na porta depara-se com a arquitetura de cumeeiras arredondadas, uma construção do início do século XX, mais precisamente do ano de 1925, abandonada e chamada pelas crianças de casa assombrada, como se ali tivesse ficado depositado todos os fantasmas da cidade. Mas, Barthes adentra o recinto, concentrado em retirar os olhos do medo, pois quem não tem medo de fantasmas também não fantasia.

Sua peregrinação começa pelo título da exposição: “Antes-Tempo”, o que significaria ter um tempo anterior ao próprio tempo? O que deseja a artista ao propor como uma colecionadora de memórias, que os habitantes daquela cidade lhes emprestassem as suas lembranças? Que também são rememorações da própria artista, sendo que esta é natural daquele mesmo lugar. Barthes encontra Lela, Lela encontra Barthes, como um jogo para além das temporalidades. O senhor francês lhe diz: - Um Antes-tempo poderia ser uma retração do tempo, uma pausa na inexistência de seu esforço de memória. Eu possuo - cara artista uma Bruma-sobre-memória, uma névoa que incide em se abater em meu imaginário, por isso cultuo as imagens. Me parece que você precisou colecionar o mundo dessas pessoas, pois fotografar é apresentar o que se foi e está sendo. Como você experencia esse estranhamento?


Lela Martorano. Antes tempo, 2018

Lela o convida para experenciar junto a ela as memórias dos habitantes de São Joaquim, conta que essa exposição foi pensada a partir das memórias daquela cidade e que sua proposição partiu de um pedido de fotografias antigas das pessoas que ali residem. E que ela iria transformar essas imagens a partir de seu olhar como artista, de sua relação com a fotografia, a pintura, o vídeo e seu acúmulo de memória e distância. E por mais belo, que fosse o seu comentário acerca do “Antes-tempo”, essa expressão era comumente utilizada na cultura local, aqueles verbetes passados por uma escuta de café nas casas de avós. - A sabedoria dos ancestrais - “Antes-tempo – antigamente, quando éramos jovens”. E não seria assim que cultuamos a  memória? É como colocar o que menos se espera para ser visto. Escolho as fantasmagorias do tempo registradas pelas pessoas desse lugar, coloco um tecido sob a imagem de mulheres, de casais, de homens e crianças, de cenas triviais do mundo da cultura como casamentos; carnavais; retratos empoeirados no cansaço das gavetas que pedem para serem abertas. Utilizo tecnologias contemporâneas, transfigurando a fotografia a partir da utilização da sobreposição do tecido fotografado, uma série de obras impressas em papel tipo lambe-lambe, “fotos-vídeo“, caixa de luz, selos postais, impressão em tecido poliéster e uma instalação com retratos originais, feitos com a antiga técnica da fotopintura. Acho que foi o senhor que disse certa vez parafraseando Marques de Sade “escrevo para pintar aqueles que amo”, como uma forma de eternizá-los.

 Eu fotografo, subverto a imagem para permanecer com as histórias de todas as gentes deste lugar. Barthes escuta atentamente as palavras de Lela e pergunta: que material é esse que você sobrepõe as fotografias cedidas? Eles me remetem a bruma, a uma fina camada que impede a nitidez diante da imagem, como caminhar em um dia de neblina. Exige que os faróis internos se exercitem para melhor enxergar. Quando olho para as imagens colocadas por você me sinto em uma casa de fantasmas, no entanto, os fantasmas não precisam pedir licença para entrar e aqui você os expõe, manipula a luz, a disposição de seu imaginário.

Entendo a sua intriga, caro Senhor Barthes, diz Lela e continua: diante da técnica utilizada e da escolha dos materiais como a toalha de renda sobreposta nas imagens, que nos remete a uma familiaridade quase brutal com a infância, ou melhor dizendo, fotografias antigas encaixam-se quase similarmente ao traçado de renda da rememoração. Difícil habitar uma casa do século XX que não possua uma toalha dessa sobre a mesa. É como se essas fotografias revelassem uma “verdade louca”, pois sabemos que esses personagens, a montagem dessas cenas, existiram em sua descontinuidade, quase um vestígio. Mas ao mesmo tempo a fotografia permite que se veja que algo estava ali e busco capturar esse “ar” contido nas expressões e gestos impregnados nessas imagens. É como dizer de um “antigamente” que se atualiza o tempo todo.

Por isso, continua a artista em sua profunda reflexão: - Esse projeto artístico envolve a participação da comunidade e promove um exercício de autorreconhecimento, de identidade e de memória da cidade. Imagens antigas com cenas cotidianas, fotos de viagens, paisagens, ambientes familiares, retratos de família, costumes e festejos – que fazem parte de uma herança cultural e histórica. A construção de uma memória coletiva fictícia: Ao deslocar as imagens de seu contexto comum para o campo da arte, estabeleço uma relação íntima com o espectador que, por sua vez, se vê remetido às próprias lembranças e pode, então, ‘criar’ sua própria memória.


Lela Martorano. Antes tempo, 2018

Barthes olhando atentamente a parede de fotopinturas cedidas pelos moradores de São Joaquim, pondera sobre como a fotografia faz aparecer o que jamais percebemos de um rosto, um traço genético, o pedaço de si mesmo ou de um parente que vem de um ascendente. As imagens cedidas e expostas na parede colonial emprestam aos olhos curiosos: casais posando seriamente para o registro, geralmente homens atrás das mulheres, olhares profundos, retratos de homens e de mulheres. A maioria não esboçando nenhum sorriso. O senhor francês ousa dizer: que antigamente sentia-se muito medo de ser fotografado, dar a imagem a outrem era como despossuir-se da própria vida. Ao mesmo tempo em que, a fotografia revela uma certa persistência da espécie, sendo possível como em um jogo da memória ir identificando os traços de nossos ancestrais. Fazendo assim explodir a diferença misteriosa dos indivíduos oriundos da mesma família. É como se o pensamento da origem nos apaziguasse. Ao passo que o do futuro nos angustia. Mas, você constrói um atlas de sua cidade, como é carregar todas essas lembranças em suas costas?

Lela sorri, conduz o senhor francês a porta e diz: - Para não ser acometida da síndrome de Atlas, aquele que carrega o mundo, sou artista, a fotografia revela um efeito de verdade louca, a foto me permite não ser desmentida, essas fotos existiram, os personagens rondam em meio as suas genealogias desordenadas, criando novas percepções ao passo em que como disse Virginia Woolf em seu diário Momentos de Vida: “O passado é afetado em grande medida pelo presente”, talvez ai resida o fato de abrir a “casa mal assombrada” da cidade, fazendo ecoar em lambe-lambe, foto-vídeo, instalação, foto-pintura, as evidências de que por trás do algodão cru reside uma ficção. Por detrás da porta um eco dos antepassados, mostrando uma deformação que cria, é como testemunhar a existência dos que amo, assim como, permitir que o espectador crie seus próprios testemunhos a partir da vertigem ocasionada por um tempo esmagado.

Barthes encaminha-se para a escada enferrujada e despede-se de Lela: - A fotografia me assola de espantos, é como perceber que a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões, mas também é preciso esquecer. A artista acena, agradece a visita, fecha a porta da casa, em silêncio observa aquelas imagens, que dependendo da hora do dia algumas desaparecem, num jogo semiótico entre delírio e sofisticação, ali é preciso tempo para cultivar o olhar.

Esse texto sobre a exposição Antes-Tempo da artista Lela Martorano, não poderia ser escrito de outra maneira, a não ser pelo encontro imaginado entre ela e Barthes, afinal, desde o primeiro momento que entrei na casa de cornijas rendilhadas situada no centro de São Joaquim e me deparei com as imagens construídas pela artista, um pensamento obsessivo tomou conta de mim: como Barthes se sentiria diante dessa exposição? E uma verdade se abateu, jamais saberei como ele se sentiria. Por isso invento, a invenção parte de um não saber, mas algo me diz que esses dois já conversaram em outras vidas.


Lela Martorano. Antes tempo, 2018

 

 

Referências Bibliográficas:

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

____________. A preparação do romance vol I. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

____________. A preparação do romance vol II. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

WOOLF, Virgínia. Momentos de Vida. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. – Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2004.

_____________. Questão de Ênfase. – Rio de Janeiro: Companhia das letras,2005.