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Divagações corpóreas
A frase que intitula esse texto permite duas vias - uma afirmativa: O corpo ainda é um problema – e a mesma permite – uma interrogação: O corpo ainda é um problema? Mas, como pudera o que nos constitui ainda ser um assombro de censuras e polêmicas? Poderia ampliar - como ainda não somos culturalmente permitidos a vivenciar o corpo? É possível dizer que nossa formação ocidental, judaico-cristã e racionalista, nos legou um entendimento do corpo capaz de executar movimentos e uma “alma racional” que nos coloca distanciados dos desejos, dos afetos, de nossa parcela de humanidade.
Em uma manhã de sábado, numa cidade alemã situada no estado de Baixa Saxônia chamada de Göttingen a filósofa Lou-Andreas Salomé em carta ao poeta Rainer Maria Rilke, corresponde que - de alguma parte das profundezas toda a arte começa em nós - e talvez o mais profundo seja o corpo. Era verão do dia 27 de junho de 1913, início do século XX, existe um limiar difícil de atravessar quando falamos dos começos, pois começar carrega a carga indubitável de um não saber. Mais de cem anos depois da correspondência de Salomé, nos vemos diante de impasses de inícios de século. Para Rilke naquele contexto das correspondências, seu corpo era um estranho objeto que o habitava e por ora o perturbava em seu ofício de poeta. Este transitava entre a doença, a profundidade, o amor e a melancolia em um contexto de desenvolvimento das tecnologias bélicas, das vanguardas artísticas, de uma espécie de “desencantamento do mundo” – como apreciar a estética do belo romântico – quando o mundo está prestes a vivenciar a sua primeira grande guerra mundial?
O fato de chocar-se com o nosso próprio corpo, que embora seja orgânico e vivente, não é menos para nós o exterior e a aparência no sentido mais íntimo, a primeira coisa diferenciada em relação a nós mesmos, no sentido de sermos os interiorizados que habitam o interior do corpo tal, a face de uma engrenagem; e no entanto, o que se refere precisamente ao nosso corpo, nossas mãos, nossos pés, nossos olhos, nossas orelhas, é bem o que se costuma chamar de “nós mesmos”; este fenômeno inquietante, perturbador, só se dissipa completamente na relação amorosa junto com outro ser, e é somente ele quem legítima de um modo suportável o nosso corpo a “nós mesmos”(SALOMÉ, 38)
Talvez o choque que sintamos ao reconhecer que possuímos um corpo, seja muito semelhante ao ato de filosofar, de repente, a filosofia e a arte surjam do mesmo invólucro que costumamos chamar de espanto – é preciso espantar-se com algo para o ato de pensar ou inventar acerca da vida. Atualmente vivemos o começo de um século, com suas idiossincrasias religiosas, barbáries e alguns velhos problemas da tradição da qual somos herdeiros, difícil não enveredar pelo caminho de uma genealogia em um contexto onde a censura aos atos artísticos tomam conta dos espaços institucionais da arte; e que esses mesmos espaços ficam aturdidos pela pressão de valores morais particulares. Algumas velhas questões se apresentam: O que pode ser considerado enquanto uma obra de arte? O ato estético pode ser despido de qualquer indício de moralidade?
Retornamos aos conflitos da modernidade, quando a estética ascendia no horizonte filosófico para dar conta de problematizar aquilo que escapava ao pensamento conceitual (mas não poderia escapar) e o juízo de gosto como uma normativa universal que visava a contemplação da obra de arte. Importante ressaltar, que o juízo de gosto, assim como, o pensamento estético possui um valor moral, ético e ideológico. Contexto este em que, as mesmas prerrogativas do sagrado se inseriam ao objeto artístico, isto é, chega-se ao ápice de um entendimento de belo e da imagem de artista. Mas, será que algum dia chegamos a superar o belo? O ideal de beleza da antiguidade clássica, os preceitos que aliam o belo ao bom, beleza e moralidade são campos indissociáveis na cultura do mundo helênico e parece ainda retumbar nos resquícios da cultura europeia da qual fomos formados. E destarte, ser tão comum ainda escutarmos juízos de valor acerca das ações artísticas como: ser belo, feio, ruim, imoral. Exemplificações estas presentes nos últimos acontecimentos em relação a exposição Queermuseu no Santander Cultural na cidade de Porto Alegre; Em São Paulo, a performance do artista fluminense Wagner Schwartz, que se apresentou nu na performance “La Bête”, no Museu de Arte Moderna (MAM), gerou grande polêmica; A exposição de Pedro Moraleida, já vista por mais de seis mil pessoas, foi alvo de protestos em Belo Horizonte. E os argumentos que permearam a censura vieram de grupo de religiosos que afirmaram que as “obras incentivam a pornografia e a pedofilia”.
E por conseguinte, a exposição Histórias da Sexualidade organizada pelo MASP em São Paulo que de antemão, por medo dos protestos por conta da temática censurou a exposição somente para maiores de 18 anos e sem a possibilidade de menores irem junto com os seus responsáveis[1]. Esse panorama dantesco em que a arte brasileira se colocou nos últimos meses, expõe questões que há muito já fazem parte do universo artístico e filosófico da humanidade: autoritarismo, puritanismo, obsolescência na relação com o corpo e a sexualidade, a defasagem formativa de um público na relação com a arte e a cultura. Sim, somos todos responsáveis pela censura e pelo não entendimento das proposições artísticas. No bojo de tais provocações, se faz essencial a configuração de um debate sério acerca da relação entre a censura e a formação humana para à arte. Um processo formativo que inclui o desenvolvimento das habilidades ético-estéticas dos sujeitos envolvidos em uma determinada cultura, ou seja, os valores morais e estéticos em relação ao próprio corpo, imaginário e suas possíveis relações.
Eis o corpo
A tradição filosófica se ocupou durante séculos de tentar responder a esse “quase obstáculo” denominado corpo e seus usos. O que pensaria Flavio de Carvalho acerca dos modelos de censura em relação ao corpo presente nas últimas exposições artísticas deste ano? Para o artista integrante do movimento modernista brasileiro, talvez isso não se configuraria em nenhuma novidade. Pois, o mesmo teve muitas exposições censuradas[2] por conta das suas ideias extemporâneas no início do século passado. Flavio apresentou no 4º congresso Panamericano de Arquitetos, no Rio de Janeiro, o seu plano expositivo para a construção de uma cidade nos trópicos. A proposta intitulada “A cidade do homem nu”[3], idealizava uma metrópole projetada para o homem do futuro, na qual, segundo Carvalho, estaria despida da presença de Deus, da concepção de propriedade privada, dos acordos matrimoniais. Sendo uma cidade pensada para uma humanidade despossuída da “construção cultural do corpo”, ou seja, um “homem sem tabus escolásticos”, “livre para raciocinar e pensar”, para dar início a uma experiência processual de inventividade, curiosidade e transfiguração individual.
Mais do que compreender a experiência iconoclasta do artista paulista acerca de uma nova proposta de urbanismo; e a pretensa relação com os habitantes de sua cidade, interessa pensar, o que levou o arquiteto-artista a defender tamanha ousadia de cidade. O que estava por detrás da necessidade de se pensar o “homem nu” ou a importância de se configurar uma sociedade despida da “construção cultural do corpo”. Flavio de Carvalho imaginava “sua cidade ideal” como uma constelação de centros e laboratórios localizados em círculos concêntricos: um “centro de parto”, um “laboratório de erótica”, um “centro de ensino”, um “centro religioso” e um imenso “centro de pesquisa”, visando assim, que no interior dessa experimentação o cidadão pudesse “descobrir as maravilhas do universo, o prazer pela vida, o entusiasmo em produzir coisas, o desejo de mudar” (GUERRERO, 2010, 08).
Esse desejo de mudar, a construção de um laboratório de erótica e um centro de ensino que leve em consideração o prazer pela vida configuram a estratégia do artista de questionar a relação entre a herança platônica-escolástica de negação do corpo e a possibilidade de se experenciar um novo modelo formativo para o humano. E com isso de forma irônica, demonstrar, a imensa dificuldade que possuímos de nos relacionarmos com o corpo e suas diferentes possibilidades. Sendo o mesmo compreendido enquanto “suporte da alma", caso este presente desde a antiguidade grega, como podemos perceber no De Anima livro II de Aristóteles quando o mesmo acentua o corpo enquanto instrumento da alma.
Essa instrumentalização pensada pelo estagirita grego[4] é um desdobramento da teoria das ideias de Platão, momento este de enaltecimento da hierarquia dos mundos (um mundo sensível permeado pelos afetos e um inteligível – perfeito pelo uso da sabedoria e do intelecto). Essas breves alusões permitem pensar que tanto o corpo quanto a arte foram relegados a instâncias inferiores no mundo socrático-grego – primeiro a instrumentalização do corpo que abarca uma alma em processo de perfeição pela via da sabedoria.
Posteriormente, a inferiorização da arte como “lugar menor” na República platônica, caso este presente no livro X da obra citada em que ao elaborar a proposta de ensino ideal para os jovens guardiões da cidade, Sócrates personagem presente em muitos diálogos platônicos, chega à conclusão de que é necessário expulsar os poetas da cidade. Pois, suas poesias enaltecem assuntos perigosos: como a cópia (imitação), o engano e isto poderia corromper a formação da juventude ateniense.
Se observarmos a cidade ideal pensada por Platão e a cidade ideal projetada por Flavio de Carvalho, iremos facilmente destacar que enquanto uma preza pela hierarquia da alma e da sabedoria, no sentido de uma universalização. Introduzindo assim, a importância do belo e da concepção de beleza, compreendida aqui a partir da esfera da moralidade e da sabedoria – o que é belo é bom. A outra pressupõe o corpo, o desejo, a erótica, a experimentação, a criatividade, tocando inclusive em uma concepção do selvagem como crítica a uma ascese do sujeito civilizado.
“Em São Paulo fundou-se, há alguns anos, a ideologia antropofágica, uma exaltação do homem biológico de Nietzsche, isto é, a ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentação sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem, como ele aparece na natureza, selvagem, com todos os seus desejos toda a sua curiosidade intacta e não reprimida”. (CARVALHO, 2010, 24)
É importante destacar que o artista paulista foi um exímio leitor da obra nietzschiana essa influência possui ressonância quando observamos a leitura de Nietzsche acerca do corpo, já que, o mesmo elabora uma crítica fecunda tanto ao cristianismo quanto a clássica dicotomia mente-corpo, herança do dualismo psicofísico cartesiano[5]. Diz Nietzsche em seu Zaratustra de 1888: “Como desprezam o corpo, se nele está toda sabedoria? Atrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo” (NIETZSCHE, 2011, 60). Esse corpo morada se aproxima tanto do entendimento nietzschiano de que habitamos um espaço de forças hierárquicas que emanam potências para além da metafísica, quanto do que Jean-Luc Nancy denomina enquanto corpo. Para o filósofo francês – o corpo é o lugar dos acontecimentos, compreender o encontro dessas duas vias – de que o corpo é a própria sabedoria e de que é neste lugar que somos atravessados constantemente, nos permite aceitar ou experenciar outras concepções de vida (bíos), que não mais do além mundo.
Segundo Nancy, já na introdução de sua obra Corpus o mesmo esclarece a famosa frase latina: “hoc est enim corpus meum”, “eis o meu corpo”, de qual corpo falamos? É o corpo de Deus que nos fala opulentamente há milênios, esse corpo de que nos fala a construção cultural cristã pressupõe uma via da carne e do sacrifício: “A angústia, o desejo de ver, de tocar e comer o corpo de Deus, de ser esse corpo e de não ser mais do que isso, fazem o princípio da (sem)razão do Ocidente. Subitamente, o corpo, o simplesmente corpo nunca aí teve lugar, e sobretudo quando ai foi nomeado e convocado. O corpo para nós é sempre sacrifício: hóstia” (NANCY, 2000, 07). Se o corpo é sacrifício, como nos relacionar com a nudez, com a sexualidade, com a arte? Talvez, problematizar o corpo ainda nos coloque no limiar do já gasto e infinito conflito entre natureza e cultura.
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. – São Paulo: Marins Fontes, 2007.
ARISTÓTELES. De anima. - São Paulo: Editora 34, 2006.
Catálogo exposição A CIDADE DO HOMEM NU. – Museu de Arte Moderna de São Paulo. – São Paulo, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. -Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
_______________. Subjetividade e Verdade. – São Paulo: Martins Fontes, 2016.
NANCY. Jean-Luc. Corpus. – Lisboa: Veja Passagens, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
___________________. Genealogia da Moral. – Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2009.
OITICICA, Hélio. Conglomerado Newyorkaises. – Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
PLATÃO. A REPÚBLICA. - São Paulo: Nova Cultural, 2004.
RILKE, Maria Rilke, SALOMÉ, Lou-Andreas. Correspondências. – Rio de Janeiro: Editora Anima.
RODRIGUES, Luzia Gontijo. A arte para além da Estética: arte contemporânea e o discurso dos artistas. In: Artefilosofia. – Ouro Preto, n 5, p. 119 -131. Jul. 2008.
[1] Essa última exposição mesmo com a postura do museu de classificar a faixa etária das obras para somente maiores de 18 anos, o ministério público federal considerou inconstitucional a proibição dos responsáveis em levar menores para a exposição.
[2] Em 1935, Flavio de Carvalho realiza sua primeira exposição individual, fechada pela polícia, com cinco obras apreendidas sob a alegação de atentado ao pudor e imoralidade. O artista consegue, na Justiça, o direito de reabertura da mostra.
[3] Essa proposta além de ter sido apresentada no 4 Congresso Pana Americano de Arquitetos, Rio de Janeiro (1930), também foi publicada no Diário da noite (01/07/1930). Republicada por Luiz Carlos Daher, em Flávio de Carvalho: Arquitetura e Expressionismo (São Paulo, Projeto 1982) e traduzida para o inglês em Valeska Freitas (org), Cem anos de um revolucionário romântico (Rio de Janeiro: CCBB,1999, p.58). Também em 2010 ocorreu a exposição A cidade do homem nu, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) tendo como referência o artigo homônimo de 1930, a exposição propôs uma reflexão sobre uma utópica cidade do futuro, onde homens e mulheres viveriam sem preconceitos. Artistas de diferentes nacionalidades foram convidados a revisitar essa ideia e expô-las.
[4] Importante destacar que em Aristóteles o corpo é visto como instrumento, mas não como prisão da alma, sendo este presente no pensamento órfico e platônico.
[5] Apesar das críticas expostas ao conceito de dualismo psicofísico de René Descartes, presente em sua teoria das Res cogitans (mente) e Res extensa (corpo), é indubitável a sua importância para o desenvolvimento do conceito de sujeito na filosofia moderna.