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Fernando Lindote
Fernando Lindote é artista plástico nascido em 1960 na cidade de Sant’Ana do Livramento (RS). Viveu alguns anos em Porto Alegre, mas escolheu viver em Florianópolis. Lindote é um dos artistas mais interessantes da arte contemporânea brasileira, principalmente por sua variedade e diversidade de recursos visuo-conceituais. Atua no sistema da arte desde 1977, com passagem por importantes eventos e instituições, como a Bienal de Arte de São Paulo, Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, Bolsa Vitae, Museu de Arte Contemporânea de Curitiba, Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, Museu Victor Meirelles, em Florianópolis, Centro Cultural de España, em Montevidéu, Itaú Cultural, em São Paulo, e Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna, também em São Paulo.
Sua carreira artística tem sido acompanhada e comentada por vários críticos e teóricos eminentes da arte contemporânea, como Agnaldo Farias, Gaudêncio Fidelis, Ivo Mesquita, Juliana Monachesi, Marta Martins, Raúl Antelo, Sérgio Medeiros e Thais Rivitti, entre outros.
Na entrevista que segue, coordenada pelos doutorandos Edmilson Vasconcelos e Edson Burg, realizada em 25 de setembro de 2013, junto à turma do curso de pós-graduação em Teoria e História da Arte da Universidade do Estado de Santa Catarina, salientaremos assuntos e conceitos discutidos na disciplina de Territorialidades Modernas e Contemporâneas, ministrada pelos professores doutores Rosângela Cherem e Felipe Soares.
Edmilson Vasconcelos y Edson Burg: Um conceito frequentemente discutido na disciplina “Territorialidades modernas e contemporâneas” é o de desconstrução[1], e a arte parece um terreno propício para debater esse conceito. Quero chegar a essa ideia a partir do exemplo com a tua formação profissional. Atualmente, muito se fala sobre profissionalismo, em especialização, em expert etc. Isso implica uma formação reconhecida que oficialize (e regule) esse profissional como apto para exercer sua atividade. Mas, no caso da arte, ou melhor, do artista, esse estatuto profissionalizante tem que se dobrar sobre si mesmo, fazer algumas concessões ou desconstruções nos seus modos e padrões. Sua formação de artista, por exemplo, é bem diversa. Poderia falar sobre isso?
Fernando Lindote: Acho que é uma questão de geração. Quando eu era menino, 20 e poucos anos, pelo menos entre os outros artistas que eu conhecia na época, não existia essa coisa de ter faculdade pra ser artista, e isso mudou totalmente depois. Outra coisa, e aí é uma questão um pouco particular, eu sempre tive muita dificuldade com essas relações. Eu não estudei dos meus 11 aos 15 anos, porque eu não suportava ficar numa sala de aula. Dos meus 11 aos 16 anos, mais ou menos, eu frequentei o atelier do Renato Canini, que era o cartunista do Zé Carioca, e isso foi uma formação, foi um tipo de aprendizado. E depois, quando jovem, eu sempre estive perto de alguém que estava estudando. Eu passei no vestibular da UDESC, frequentei uma tarde e fui embora. Mas eu sempre estive muito próximo de quem estuda muito, pessoas que fazem doutorado, que fazem mestrado. E eu aproveitei, tentei aproveitar, aquilo que eu achava que era a discussão mesmo, sem ter que cumprir com todo o resto. Agora, pro que eu acho que você perguntou, esse dado é personalidade, que eu acho que é específico meu. E agora mais do que achar, eu acredito, não tem realmente universidade, uma instituição que possa dar conta de formar um artista, é impossível. Não se pode pedir isso. O que uma universidade pode colocar, se ela tiver bom senso, é informação a melhor possível, a mais abrangente possível, e criar dentro da sua grade momentos em que essas pessoas possam se reunir e conversar, com um grau mínimo de franqueza. Eu acho que a minha formação carece, e acho que a formação de vários artistas que eu conheço carece, é da possibilidade de exercício, que é muito difícil, de discutir os trabalhos com franqueza. Nem a formação em atelier garante. Eu tenho formação de atelier, basicamente frequentar e dividir atelier, mas isso pra mim não garante, porque basicamente a experiência gerou um artista com aquela característica de cozinha, “sei tudo sobre gravura, sei tudo sobre cerâmica, sei tudo sobre pintura”. Isso também não resolve absolutamente nada, porque te dá um conhecimento técnico, mas é muito perigoso também, porque o conhecimento técnico nessas áreas te dá a ideia de que você consegue pintar, mas o negócio é só isso. Só uma pintura. Ele não quer articular outras coisas que, sei lá, que chegam nesse, sabe, essa tentativa de dar um passo além do discurso, minimamente que seja. Que seja só um ímpeto de ir um pouquinho além do discurso, eu acho que isso é um movimento que a arte, isso que a gente chama arte, ainda pode dar. E que essas coisas não garantem nada, mesmo formação de atelier. Não tem como garantir. E isso felizmente ainda é assim. Agora, a estrutura de mercado, eu acho que ela pode também estar influenciando isso.
E. V., E.B.: O corpo é uma recorrência no teu trabalho. Você morde, mastiga, lambe, pinta com a língua. Os textos críticos sobre você abordam bastante esse tema, mas constato uma coisa: fala-se muito nesse corpo, na presença do corpo do artista na obra etc. Nesse sentido, vejo que se dá uma primazia para essa instância “corpo”, ao discurso em torno do conceito de corpo, em restrição ao discurso sobre as imagens. E me parece que esse uso do corpo, no teu caso, é mera ferramenta, com a qual só poderias chegar naquela imagem, objeto ou resultado fazendo daquele jeito específico. Tinhas que usar a língua em vez de usar o pincel. O que achas disso?
F. L.: Acho que é um ponto que foi um tanto delicado nos anos 90, porque era um momento do circuito brasileiro em que os processos, procedimentos, eram, vamos dizer, a tônica. E meu trabalho tinha um procedimento muito peculiar. E aí a abordagem do trabalho foi sempre pra esse lado, o procedimento que eu fazia como o que interessava no trabalho. E nunca foi, da minha parte, até do que eu falava do trabalho, não que eu quisesse chamar tanta a atenção pra isso, mas eu me lembro, tem texto que eu publiquei falando sobre o trabalho, que eu dizia que quando eu decidi, por exemplo, morder a borracha do E.V.A., era um procedimento que veio depois de cortar com o estilete. Como o estilete não deu o resultado que eu esperava, para o que eu queria fazer, eu tentei fazer com a mão. Como a mão também não funcionou, eu mordi. O uso do corpo veio como instrumento específico, tão específico quanto o pincel, espátula, coisa assim. É o instrumento que eu achava mais adequado. E eu acho que isso fica claro, por exemplo, na época das mordidas, porque nos primeiros trabalhos o procedimento vale tanto quanto a imagem, a imagem é bem anêmica, as placas são placas mordidas e o resto delas. Ponto. E aí a visualidade tá muito em cima da cor daquilo, daquele material. Porque eu achava “puxa vida, esse é o corpo cor do Oiticica”, essas coisas assim. E depois, o final dessa série, de quase dez anos desses trabalhos todos com mordida, são esculturas feitas, modeladas com a mordida, mas todas configuram, todas apresentam formas muitos definidas, inventadas, enfim, são figuras mesmo. Eu invento figuras mesmo nessas esculturas, que tenham uma leitura muito clara a partir do que elas parecem, a mistura do que elas são. E aí fica bem claro, no final desses trabalhos todos, que o que eu queria era fazer aquelas coisas, e pra isso eu tinha que morder. Isso no meio da história, lá no início, quando eu comecei a fazer esses trabalhos com mordidas, tinha um colega meu, muito bom nessa coisa de entender o panorama do momento, ele disse: “nossa, tu tens que fazer fotografia. O que interessa é tu mordendo isso. Nossa, foto, foto”. E realmente, se eu tivesse feito só a foto do procedimento, meu trabalho teria tido um tipo de inserção bem diferente do que ele teve. E eu não fiz.
E. V., E.B.: Ao mesmo tempo em que você não consegue explicar tudo o que faz no trabalho, você é um artista que escreve muito sobre teus trabalhos, você quase que dispensa o que se pode falar sobre ele. Os textos de exposição são teus, os textos de catálogo são teus, o que é paradoxal, porque o artista tá sempre num campo cego.
F. L.: Primeira coisa que eu posso dizer sobre texto, e isso é sincero, não é demagogia: eu não gosto do que eu escrevo. Eu sou muito mais condescendente com os trabalhos de artes visuais que faço, nesses eu vejo defeito e deixo passar. E nunca escolhi muito escrever sobre meu trabalho, foi sempre a circunstância que fez escrever. Mas o estilo, acho, sempre muito ruim, porque quando eu vou fazer uma pintura ou uma escultura, eu sei mais ou menos as relações que eu estou fazendo, isso é bem simples, as relações que eu estou mesmo, porque eu não tenho conhecimento de texto pra saber que eu estou brincando agora, estou brincando com dois modos, três modos de escrever texto. Isso eu não faço, meu texto é muito ingênuo, ele é, assim, na primeira pessoa – e é isso que eu não gosto, porque não tenho esse domínio, e nunca me propus desenvolver porque acho que não tenho talento pra isso.
E. V., E.B.: Ainda em relação ao texto, eu acho curioso, e estou falando só a partir do que você falou, tem uma relação com a poiesis, com trabalho na pintura, e uma relação completamente diferente com o texto, como se fosse assim, tu te vês como artista no trabalho e tu não te vês como escritor que deverias, ou que gostarias de ser. Há um reconhecimento da poiesis como uma coisa aqui e não aqui. É mais ou menos isso? Qual o problema que tu vês com o teu texto?
F. L.: É isso, eu acho que não tenho. Hoje em dia, quando vou pintar um negócio, tenho aí uma experiência de bem mais de 30 anos fazendo isso, e não que isso justifique, que automaticamente te dê qualidade pra isso, mas esse tempo de experiência me dá uma noção mais clara dos elementos... Basicamente, tenho conseguindo fazer isso. E talvez seja só isso mesmo, mas eu sei os códigos que estou articulando. Eu sei as relações que estou me propondo articular. Que eu não esteja fazendo bem, aí é outra questão, aí não me preocupo tanto com isso. Mas eu tento fazer o melhor, lógico, mas sei o que estou articulando como estrutura mesmo. Isso eu não consigo fazer no texto, não tenho domínio técnico e de conteúdo. Pra fazer o texto é outra formação, eu teria realmente que estar mais imerso nisso. Então o meu texto é muito sem essa perspectiva, porque essa distância que falei, que talvez o pensamento válido seja uma das coisas que me ajuda a ter, essa certa distância... Acho que a conquista é a certa distância. Eu não consigo ter no texto, eu acho ele ingênuo, porque ele sai na primeira pessoa, a construção dele é porque eu queria dizer aquilo. E eu não consigo estar assim, porque quero dizer isso eu vou brincar com “quem dizia isso, em que época”. E aí vou chegar num outro ponto, o texto vai ter uma invenção. O meu texto não tem invenção, ele é o depoimento de uma ideia.
E. V., E.B.: Aí tem dois aspectos importantes. Primeiro, tu demonstras, confirmas que a técnica nunca é mera técnica. A técnica se confunde com o todo do gesto, não tem como distinguir técnica e política. Por isso essa diferença, tem um apuro técnico, domínio sim, mas mais do que isso, tem uma exuberância técnica de um lado e não tem no outro, e dá nisso. E o segundo aspecto é o quanto isso é sintomático em ti, os motivos que te levam a escrever. Porque, apesar de não gostares, eu fiquei imaginando algo como... parece que tu estarias dizendo assim: “eu escrevendo é ruim, mas se outro for escrever é pior ainda”. Ou pelo menos não tem gente pra escrever, não tem crítica.
F. L.: Existem textos sobre meu trabalho que gosto muito, e são infinitamente melhores do que qualquer coisa que eu tenha escrito. Isso é algo bem concreto pra mim. Existem muitos textos sobre o meu trabalho que são maravilhosos. Não vou citar um por um, mas são de pensadores importantes e tenho muito orgulho de haver merecido esses textos. Mas, em certos momentos escrevo sobre meu trabalho por circunstâncias que são mais pelo tempo ou necessidade de explicar o que tenho que fazer. É uma prática que a gente acaba tendo, assim, eu não sou reativo no circuito. Eu sou pró-ativo, eu não fico esperando o espaço, eu vou atrás do espaço sempre. Então a minha prática ainda é como de um jovem artista, eu tenho que ir atrás. E pra isso, a prática de quem vai atrás desse tipo de coisa é fazer memorial descritivo e explicar o conceito de seu trabalho. E aí isso me força a fazer texto até hoje. E aí sim, tem que ter uma certa clareza e pode ser, como texto, ingênuo, porque ele é só um texto que tem que explicar aquilo que tu pensas. Mas há, realmente, muitos textos que escreveram sobre o meu trabalho que eu gosto muito.
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[1] Desconstrução é um conceito elaborado por Jacques Derrida como crítica aos pressupostos dos conceitos filosóficos.