“A imagem retira-se enquanto fantasma ou fantasma da Ideia, destinada a desaparecer na própria presença ideal. Ela se retira assim enquanto imagem ‘de’, imagem de alguma coisa ou de alguém que não seria, ela ou ele, uma imagem. Ela se apaga como simulacro ou como rosto do ser [...] O que resta em retirada da imagem, ou o que resta em sua retirada, como essa própria retirada, é com efeito o vestígio.”
Jean-Luc Nancy
O Pior de Mim. Desenhos: Narjara Reis, 2016
Em meados do século XV, Domenico da Piacenza compôs o tratado “De la arte di ballare et danzare” (Sobre a arte de bailar e dançar). Domenico enumera seis elementos fundamentais da arte da dança: medida, memória, agilidade, maneira, medida do terreno e “fantasmata”. Este último elemento, absolutamente central – é assim definido:
“Digo a ti, que quer aprender o ofício, é necessário dançar por ‘fantasmata’, e nota que ‘fantasmata’ é uma presteza corporal, que é movida com o entendimento da medida [...] parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça de medusa, como diz o poeta, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele instante, e no instante seguinte cria asas como o falcão que tenha sido movido pela fome, segundo a regra acima, isto é, agindo com medida, memória, maneira com medida de terreno e espaço.”[1]
Giorgio Agamben, em seu pequeno livro “Ninfas”[2], salienta que Domenico chama por ‘fantasma’ uma parada repentina entre dois movimentos, capaz de concentrar virtualmente na própria tensão interna a medida e a memória de toda a série coreográfica. Domenico com o termo “dançar por fantasmata”, conforme testemunho de seus discípulos, pretendia exprimir muitas coisas que não podem ser ditas.
Performance "O Pior de Mim", de Monica Siedler, 2016. Foto: Daniela Colossi
Monica Siedler, atriz e performer formada em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (campus de Florianópolis, SC – Brasil), monta o solo “O Pior de Mim”, viabilizado pelo Prêmio Elisabete Anderle de estímulo à cultura - 2014. A pesquisa nasce de uma série de exercícios para a criação da “persona” da performer, onde características físicas, emocionais, e os modos como interage, e é olhada pelo ambiente que habita são evidenciados, exagerados e expostos enquanto fragilidade e potência de ação, numa tensão entre forma e desfiguração, presença e ausência, interrogando a inelutável cisão do ver.
Desde o nascimento da pesquisa, Monica convidou artistas e público em geral para instaurar um campo de vivências e experiências voltadas às questões trabalhadas no projeto. Neste contexto, a dança foi materializada em vídeo-performances, fruto de sua parceria com Barbara Biscaro na residência artística “Solidão Compartilhada” em 2015. Durante o processo de pesquisa foi publicado, no blog do projeto, textos e desenhos, assinados por amigos e espectadores. O solo teve sua estréia em meados de abril de 2016 no Museu da Imagem e do Som (MIS) em Florianópolis, performance compartilhada com o Dj Ledgroove, o Vj Bruno Bez, e o cenógrafo Roberto Gorgati; com outras apresentações em diferentes localidades da cidade nos meses de abril e maio, contando, ainda, com a participação da poeta-visual Fê Luz.
O projeto não se fecha na pesquisa de movimento, mas se abre para diferentes formas de se colocar diante do outro, e com o outro. O pior de mim olha, interroga, reconhece, os próprios limites, os próprios fracassos, os próprios fantasmas. A artista tem explorado nos últimos anos intersecções entre o teatro e a dança, assumindo também o papel de interprete criadora. Monica Siedler, talvez proponha um modo de existir em dança, semelhante ao “dançar por fantasmata” de Domenico. Um modo de encenar, quase espectral, em meio às imagens. Uma dança de comportamentos errôneos, viciados, (des)contínuos, quase sempre disparados por outrem.
O duplo, o outro de nós, igual e simétrico, potencialmente destrutivo. Vários escritores o visitaram, Goethe e Poe, Kafka e Dostoiéviski, Stevenson e Borges,. Sugerido ou estimulado pelos espelhos, pelas águas e pelos irmãos gêmeos, o conceito do duplo condiz com a sua denominação: são dois seres ou duas imagens de si mesmo. Pela repetição dessa temática ao longo dos séculos, o homem demonstra a necessidade de conhecer a si mesmo intimamente, e o tema da duplicidade nos assola como uma sombra que está camuflada sob cada máscara. A questão do fantasma é central na performance de Monica Siedler. Não é uma confiança na razão, mas na espectralidade da dança. O discernimento prolifera os fantasmas, e na cena contemporânea circula a sombra, circula a imagem.
Performance "O Pior de Mim", de Monica Siedler, 2016. Foto: Daniela Colossi
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[1] PIACENZA, Domenico de. apud. AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012, 23-24.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012, 24.