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Dois corpos, 2016 (madeira e circuito eletrônico)
para Raquel Schembri, em memória
Dois cubos de madeira aparentemente iguais estão lado a lado sobre uma base. Apesar da semelhança, um deles levita.
Faz alguns anos que venho investigando a problemática da levitação dos corpos. Em uma residência que fiz no JA.CA (Centro de Arte e Tecnologia do Jardim Canadá), em Belo Horizonte, comecei a esboçar maneiras de trazer esse mitologema para uma obra, e ainda era muito difícil imaginar o que significava esse interesse sobre levitação, mas ali se iniciava a pesquisa.
Alguns meses depois, abordei o tema em uma residência no RedBull Station, em São Paulo. Meu ateliê tinha uma janela com vista para o Edifício Joelma, famoso pela tragédia do fogo. Naquela residência fiz uma instalação que se chamou “Sobre queda ou Desejo de flutuação”, reflexão sobre o ato de se arremessar ao vazio, sobre a esperança de flutuar, de sair da condição de tragédia rumo a uma esperança de redenção, mesmo que pouco provável. Imaginava o ato de se atirar no vazio, fugindo do fogo, como um ato de esperança e não de desespero. É uma visão romântica da tragédia, mas era uma maneira de lidar com a imanência daquelas 191 mortes.
Dois anos se passaram quando eu e Raquel, quem conheci no JA.CA, entramos num templo hinduísta na Indonésia, com nosso neném ainda na barriga, estávamos com outras centenas de pessoas locais participando de um ritual de celebração do ano novo. Foi lá que me aconteceu algo completamente novo. Não conseguia parar de reparar que um homem se destacava no meio da multidão: ele aparentemente era igual a todos nós, mas era mais luminoso, mais leve, era como se levitasse. Depois descobri que era considerado um homem santo.
Três meses depois nasceu nossa filha, e Raquel partiu. Em meio à confusão que minha vida virou, não consegui parar de pensar no que tinha de diferente naquele homem que quase levitava no templo da Indonésia, não consigo parar de pensar em Madre Teresa que levitava em seus êxtases, e em Shāntideva, que se foi do mosteiro budista levitando logo depois do famoso discurso “O caminho do Bodisatva”. Pensava também na assunção de Maria, nos êxtases de São Cupertino e de tantos outros homens que eram como nós mas que, da sua maneira, flutuavam.
Dois corpos é uma tentativa de compreender a leveza das coisas e das pessoas. Tudo que nos cerca pode ser ordinário ou pode flutuar, depende do olhar que deitamos sobre o mundo e, desconfio, que um olhar que levita as coisas acaba por levitar quem deposita o olhar.
A escultura é o primeiro trabalho que faço depois do ocorrido, depois da morte do meu amor e do nascimento de minha filha. Fazem só 3 meses que tudo aconteceu. Voltar ao trabalho nos horários em que a neném dorme me ajuda a manter a serenidade, a organizar minha vida e meus sentimentos. Pensando sobre a Raquel, lembro de sua presença leve, viva e brilhante. Para mim Raquel era um corpo igual aos outros corpos, mas era mais leve, e tenho certeza que agora flutua.
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Confira a exposição de Rachel Schembri na Revista Interartive: https://interartive.org/2015/02/raquel-schembri/
Roberto Freitas Website: http://www.robertofreitas.net