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Há 51 anos atrás. Arthur C. Danto, apresentava no Simpósio A obra de arte seu primeiro estudo sobre filosofia da arte: o artigo The Art World (O Mundo da Arte) prezava por uma questão primordial: como um objeto adquire o direito de participar, como obra de arte, do mundo da arte? Quase 20 anos depois, seguindo a linha dos autores obsessivos por uma questão, como este mesmo gostava de se denominar, escreve A transfiguração do Lugar Comum: Uma filosofia da Arte. Com um estilo mais arejado e não menos contraditório, desdobra a questão central de seu “Mundo da Arte”, momento em que sofreu seu ritual iniciático na crítica de arte ao ser convidado para escrever para a Revista The Nation:
“Em A Transfiguração, imaginei uma galeria cheia de quadrados vermelhos, pertencentes a diferentes gêneros e com sentidos diferentes, mas de aparência totalmente semelhante. Isso me levou a propor uma rudimentar definição de arte que me foi bastante útil quando eu assumi a crítica de arte: algo é uma obra de arte se incorpora sentido[1]”.
Sendo fiel à matriz filosófica analítica, atenta para o fato de um objeto vir a significar qualquer coisa e, portanto, plenamente capaz de “incorporar sentido”. Ao se deparar com a Pop Art, as caixas de sabão em pó de Andy Warhol e as telas de Roy Lichenstein, Danto emerge de sua tradição analítica de pensamento, transita quase no barroco filosófico e resgata a teoria dos indiscerníveis do filósofo alemão Leibniz, sintetizando: objetos que possuem a mesma representação no “mundo da vida” podem possuir significados completamente diferentes. A questão para o filósofo era posta da seguinte maneira: o que difere um objeto ordinário, como uma caixa de sabão Brillo Box do supermercado, da caixa de sabão de Andy Warhol? É necessário o que ele define como “Mundo da Arte”: “ver algo como arte requer algo que o olho não pode repudiar – uma atmosfera, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte”[2].
Existem duas ordens de relações estéticas, dependendo de o objeto ser uma obra de arte ou uma simples coisa real idêntica. Consequentemente, não se pode recorrer a considerações estéticas para chegar a uma definição de arte, pois precisamos de uma definição prévia para identificar as reações estéticas apropriadas a obras de arte em contraste com meras coisas reais.(...) aprender que um objeto é uma obra de arte é saber que ele tem qualidades que faltam ao seu símile não-transfigurado e que provocará reações estéticas diferentes. E isso não é institucional, mas ontológico[3].
O que Danto tenta esclarecer na Transfiguração do Lugar comum e também em seu escrito anterior de 1964, é que primeiramente por mais que um objeto possua um caráter mimético com a realidade, este pode ser completamente diferente do seu significado no “mundo da vida”. Ou seja, é possível supor que para o filósofo norte-americano, a “era do gosto foi sucedida pela era do sentido” – legando assim, que o que de fato importa é o que a arte e o objeto artístico significam[4]. A partir de sua influência pela filosofia analítica, Danto elenca uma possível definição para as obras de arte, podendo ser sintetizada da seguinte maneira:
São sempre sobre alguma coisa; têm conteúdo semântico; projetam um ponto de vista ou atitude sobre este conteúdo; projetam este ponto de vista por meio de elipses retóricas, metafóricas; requerem uma interpretação que é constitutiva de sua identidade artística; esta interpretação é historicamente localizada num mundo da arte pertinente.[5]
O filósofo de o “fim da arte” vai mais fundo em seu “aprendizado de viver com o pluralismo artístico”, chegando a causar polêmica ao dizer que a história da arte morreu, clara alusão a “morte da arte”, presentes no curso de estética de Hegel. Ora se Danto compreende que a era do sentido substitui a era do gosto moderno, destituindo os sistemas da tradição moderna. O que ele quer dizer - é que a forma com que as “narrativas históricas” e aqui é possível inserir a filosofia, tratam a busca por um sentido da arte, isto é, a sua metodologia deve ser modificada. Como bem explicita Virginia Aita, em seu artigo - “Arthur Danto: Narratividade histórica da arte sub spécie aeterniatis ou a arte sob o olhar do filósofo:
Danto resume assim a aguda clivagem entre o moderno e o contemporâneo, cindidos por este momento extremo em que a arte coincide com sua própria autorreflexão filosófica: “Em parte o sentido de não pertencer mais a uma metanarrativa, registrando a si mesmo na nossa consciência em algum lugar entre a inquietação e o regozijo, é o que marca a sensibilidade histórica do presente”[6].
Será que de fato essa pertença inexiste? Nesse contexto, se retorna mais uma vez a defesa do filósofo por uma estética do sentido em detrimento da forma, sua crítica consiste, em romper com interpretações da arte como a de Clemente Greenberg[7], até sistemas de representação que identificam certas teorias da arte ou modus operandi, enquanto “verdadeiras formas de arte”. Se outrora as grandes narrativas da história da arte, legitimaram a inserção de determinados movimentos artísticos em sua história e excluíram, outros por não considerá-los pertencentes a algum código necessário. A questão ainda permanece, será preciso uma negação das narrativas históricas modernas da arte para o entendimento da arte contemporânea? Ou será que como observa Gadamer:
O criador de uma obra de arte pode ter em vista respectivamente o público de seu tempo: o ser propriamente dito de sua obra é aquilo que ela consegue dizer, e o que ela consegue dizer sempre se lança por princípio para além de toda limitação histórica. Nesse sentido, a obra de arte possui um presente intemporal.[8]
É conveniente retornar ao que Celso Braida colocou em seu artigo intitulado: A forma e o sentido da frase “Isso é arte”, esse caminho de buscar uma legitimação da arte, do quem “está autorizado a dizer: “isso é arte”, é um sinal para evitar “conceder a autonomia à arte”. Segundo o autor, essa prática teórica pode recair em um relativismo ontológico e epistêmico generalizado.
Ao dizer “Isso é arte”, isso de que se fala torna-se e passa a ser imediatamente “arte”, na medida em que esse ato performativo for bem sucedido. E aquela ou aquele que é bem sucedido em executar esse ato, autodenomina-se “artista’ (crítico, mercador, ou filósofo da arte) e assim é aceito no mundo da cultura”. Desse modo, ficamos a depender dos “experts” dos “artistas da hora”, que são aqueles capazes de “dar nomes às coisas”, de dar o nome “arte” a algo, como o fez Duchamp, e como fazem aquelas pessoas autorizadas pela prefeitura. Por detrás desse ato performativo que faz de algo arte ao nomeá-lo “arte” esta toda uma história que constitui esse ato como um ato autorizado. A matriz dessa situação é a definição da arte como aquilo que não tem conceito e do artístico como uma condição inexaurível pelo pensamento.[9]
A partir dessa colocação de Arthur Danto do “mundo da arte” e da legitimação do “artístico” através de um público especializado e da crítica tecida por Celso Braida a essa sistemática de abordagem, acaba-se por evidenciar uma leitura da arte como sendo “tudo ou qualquer coisa”, reinterando um discurso já conhecido. Neste sentido, faz-se importante ressaltar, o contexto que esse pensamento em arte encontra-se inserido. Sendo possível de observar, que nas décadas de 1960/70 a postura dos artistas frente à obra de arte, e, ao circuito que as encobre irá reverberar de forma contundente e poderia se dizer que em algumas situações decisiva. A imensidão de escritos de artistas e a significação do entendimento, acerca do que se compreende enquanto obra de arte, serão amplamente debatidas nos movimentos que precedem as décadas de sessenta e setenta do século passado: “Cada período histórico tem, assim, produzido diferentes tipos de escrita de artista quanto das transformações de linguagem, apresentando modos diversos da sua inscrição na história da arte”[10].
Danto em seu ensaio O Mundo como Armazém: Fluxus e Filosofia, de 2002, publicado no catálogo O que é Fluxus? O que não é! O porquê, busca mapear filosoficamente o que seria o Fluxus e as ações desse movimento no contraste com o que se compreendia e se vivencia enquanto obra de arte. O filósofo das transfigurações começa seu texto nos convidando a adentrar um enorme armazém onde, na porta, deparamo-nos com William Kennick, esteta que em 1958[11] instruiu seus leitores a adentrarem em um outro armazém constituído de materiais heteróclitos: quadros variados, partituras de sinfonias, danças, hinos, ferramentas, barcos, etc. O desafio era sair desse armazém somente com obras de arte.
Em contraposição ao pensamento de Kennick e também do que estava sendo pensado no final dos anos 1950, um certo furor da filosofia da arte em compreender a nova arte que estava emergindo. Muitos filósofos se apropriaram da filosofia analítica, principalmente da Teoria dos Jogos de Wittgenstein[12], como uma tentativa de investigar ontologicamente a obra de arte, o que para Danto não seria o suficiente, mesmo este sendo também de tradição analítica:
Kennick estava aplicando ao conceito de arte uma ideia revolucionária apresentada anteriormente nessa década por Ludwig Wittgenstein – que somos capazes de navegar pelo mundo sem o tipo de definições que filósofos, desde Platão, assumiram que era sua incumbência fornecer – tais como justiça, conhecimento, beleza, amizade (...) Wittgenstein afirmava que todos nós sabemos como aplicar esses conceitos e reconhecer as diferenças necessárias, enquanto os filósofos, por mais de dois milênios, fizeram escasso progresso na sua jornada em busca de definições. Ele ilustrou esta ideia com um exemplo simples – o de jogos[13]. Ainda assim, todos sabemos quais coisas são jogos e quais coisas não são[14].
O que o filósofo norte-americano, tenta nos dizer, a partir da fala de Kennick e sua apropriação da teoria wittgensteiniana, é que esse saber, essa similaridade são possíveis de serem aplicadas ao nosso conhecimento sobre a obra de arte, e que nenhuma definição nos fará ir muito adiante. Para Danto, isso se constitui em um engano visto existir um problema de distinção entre obras de arte e jogos. E talvez aí resida a diferença entre o armazém de Kennick e o de Arthur Danto.
Esse contexto permite observar duas questões fundamentais no desenvolvimento da própria história da arte e das ideias estético-filosóficas, pois a partir das vanguardas históricas e mais apropriadamente da arte da metade do século XX, os artistas tomam uma postura mais “radical” frente à obra de arte, configurando um caráter destes enquanto sujeitos-críticos da própria obra. Sendo essa tomada de postura uma crítica evidente, ao modelo racionalista crítico e judicativo da modernidade. Todavia, essa tomada de postura levanta algumas questões que impossibilitam pelo viés da “fala” do artista buscar uma compreensão da arte e do fazer artístico, como é o caso da afirmação de Joseph Kosuth ao dizer que: A única exigência da arte é com a arte. A arte é a definição da arte[15]. Evidenciando que:
Trabalhos de arte são proposições analíticas. Isto é, se vistos dentro de seu contexto – como arte – eles não fornecem nenhuma informação sobre algum fato. Um trabalho de arte é uma tautologia, na medida em que é uma apresentação da intenção do artista, ou seja, ele está dizendo que um trabalho particular é arte, o que significa: é uma definição da arte. Portanto, o fato de ele ser arte é uma verdade apriori (foi isso o que Judd quis dizer quando declarou que “se alguém chama isso de arte, é arte”)[16]
Seguindo essa via, de uma “intencionalidade” por parte do artista em definir o que pode ou não ser arte, isto é, um indivíduo enquanto uma instância legitimadora não mais só do “fazer artístico”, mas do todo desse processo, recai-se mais uma vez no “princípio da autoridade” e não em uma analiticidade do problema. Indivíduos socialmente reconhecidos por um “meio de arte”, no caso, o artista como o principal sujeito legitimador da obra, essa afirmativa permite se aproximar da conceitualização de George Dickie acerca da Teoria Institucional, onde este assevera quem “está autorizado para dizer o que é arte ou identificar quando se trata de uma obra de arte”, sendo assim, o filósofo esclarece que existem duas categorias fundamentais para a interpretação dessa definição: (1) um artefato (2) um conjunto de aspectos os quais conferem ao objeto a sua posição de candidato para a apreciação por alguma pessoa ou pessoas atuando em nome de uma certa instituição social (o meio artístico)[17]
Todavia, essa forma de definir a arte, acaba por se colocar de forma paradoxal no que tange ser uma proposta muito aberta, visto então, que se tudo que for um artefato e for legitimado pelo “mundo da arte”, pode ser considerado enquanto tal e que sob essas condições também são arte, esse leitura “sociológica”, ajuda em certa medida a compreender o que poderia “ser” a arte contemporânea. Mas também está distante de resolver o problema. E talvez, isso se coloque por uma questão de método e sistematização desses conceitos. Ou seja, é necessário que se adentre o espaço de uma nova configuração de sentido, a partir do diálogo com a própria arte, esmiuçando em seus recônditos o que ela tem a dizer, e não falar por ela. Tentar compreender na duração “intempestiva”[18], que sentido pode ser esse - é o ato, o processo, a “interpretação ruminosa” partindo de uma perspectiva nietzschiana ou já estamos adiante, o dizer não nos possui tanto “sentido” assim?
Ao mesmo tempo em que, Danto e sua inquietante atmosfera categórica permite compreender um caminho a ser trilhado, mesmo que esse trajeto encaminhe para uma leitura essencialista e interpretativa da arte. Uma questão sobressalta: Quando as questões parecem de difícil resposta, o filósofo é o indivíduo convocado a adentrá-las - é não obstante - que as ressonâncias que empreendem um caminhar da filosofia com a arte, venha a ser um dos maiores legados da complexa busca de sentido da arte contemporânea e suas extensões.
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[1]DANTO, Arthur C. Da filosofia à crítica de arte. In: Revista PORTO ARTE, V. 16, Nº 27, novembro/2009. p. 10.
[2] DANTO, Arthur. O mundo da arte. Trad. Rodrigo Duarte. In: Arte filosofia n.1. UFOP, 2006, p.20.
[3] Idem, p. 183.
[4] DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea. In: Revista ARS (São Paulo) vol.6 no.12 São Paulo July/Dec. 2008. p. 21.
[5] Essa síntese encontra-se em AITA, Virginia. “Arthur Danto: Narratividade histórica da arte sub spécie aeterniatis ou a arte sob o olhar do filósofo. In: Revista ARS (São Paulo). Vol 1. nͦ1, 2003. p. 155.
[6] Idem, p. 148
[7] É importante contextualizar historicamente essa defesa do filósofo norte-americano, a crítica à estética formalista se dirige mais especificamente a Clement Greenberg (1909-1904), crítico atuante na defesa do expressionismo abstrato, movimento artístico que vigorou nas décadas de 1940 e 50, principalmente nos EUA. Segundo esse crítico, a forma artística determina sua qualidade, e no caso, para este não existia nada mais significativo que a “forma pura” advinda das pinturas abstratas. Para Greenberg a pintura abstrata seria o novo Laooconte, alusão a obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia do filósofo alemão Gotthold Lessing (1729-1781).
[8] GADAMER, Hans G. Estética e Hermenêutica (1964). In: A Hermenêutica da obra de arte. – São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 02.
[9] BRAIDA, Celso. A forma e o sentido da frase “Isso é arte”. P. 03.
[10] COTRIM, C. FERREIRA, G (ORGS). Escritos de artista anos 60/70. –Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 11.
[11]KENNICK, William. “Does traditional Aesthetics Rest on a Mistake?” Mind 67, 1958.
[12]WITTGENSTEIN, Ludwigg. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[13] Existe uma longa tradição na história da filosofia que leva a relação entre o conceito de jogo e obra de arte. Elencamos algumas, partindo da etimologia do termo jogo na língua alemã, matriz de muitos desses pressupostos: no alemão, jogo é traduzido por Spiel que abarca também o campo semântico do que denominamos em português pela palavra “brincadeira”. Em alemão, utiliza-se este termo tanto para os jogos esportivos quanto para as brincadeiras, as encenações teatrais ou o ato de tocar um instrumento. No caso do mundo animal, o que se tem em vista é claramente o jogo no sentido de uma brincadeira. Cf: Marco Antonio Casanova (tradutor da obra A Hermenêutica da obra de arte). GADAMER, Hans G. A hermenêutica da obra de arte. – São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 50.
[14]DANTO, Arthur C. O Mundo como Armazém: Fluxus e Filosofia. In: Catálogo O que é Fluxus? O que não é? O porquê. What’s Fluxus? What’s Not? Why. Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília/Rio de Janeiro, 2002.
[15] KOSUTH, Joseph. A arte depois da filosofia (1969). In: COTRIM, C. FERREIRA, G (ORGS). Escritos de artista anos 60/70. –Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 220.
[16] Idem, p. 219-220.
[17] DICKIE, George. “Defining art”, American Philosophical Quarterly, Vol. 6. No 3 (Jul., 1969). p. 254.
[18] Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben em sua obra O que é o Contemporâneo? A matéria reflexiva que se interpõe ao se pensar o contemporâneo e mais especificamente sua relação com o tempo é: “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido inatual.”. Ver: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. – Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 58.