O grito de Munch ecoa no universo de Marina Abramovic | LUCILA VILELA

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The Scream by Edvard Munch

Edvard Munch. O Grito, 1893.

 

Para celebrar os 150 anos de nascimento do pintor norueguês Edvard Munch, a cidade de Oslo, em 2013, abrigou uma série de eventos rememorando a importância do artista. Na ocasião, uma grande retrospectiva de sua obra, talvez a maior da história, foi montada na Galeria Nacional e no Museu Munch exibindo mais de 250 obras do artista, entre eles as quatros versões de seu célebre quadro “O Grito” (Skrik), sendo a primeira realizada em 1893. De toda a angústia que habita a paisagem, do grito que se cala na matéria, nota-se um universo perturbador. Munch, em uma passagem de seu diário, em 1892, relata o momento que possivelmente o impulsionou para criar o quadro: “Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza.”[1] É nessa paisagem, na cidade de Oslo, que o grito estremeceu e tornou-se ponto fundamental para entender as questões que influenciaram as produções artísticas ao longo da história.

Foi na área do Parque Ekeberg, revitalizado recentemente pelo investidor Christian Ringnes em colaboração com a prefeitura de Oslo, em que supostamente Munch foi surpreendido pela sensação arrancada da natureza. Ekeberg é atualmente um parque de esculturas e abriga mais de trinta obras de artistas nacionais e internacionais. Uma das mais recentes e notáveis produções, foi a intervenção de Marina Abramovic, artista iugoslava conhecida principalmente por seu forte trabalho com performances. Considerando a carga simbólica da paisagem absorvida por Munch, Marina Abramovic instalou uma moldura do tamanho original do quadro “O Grito” e deixou com que as pessoas completassem o trabalho expelindo todas as emoções que podem sair na explosão de um grito. Para isso, a artista convocou residentes em Oslo de variadas idades, profissões e classes sociais. No total, foram 270 participantes que fizeram do grito seu denominador comum, que evocaram a mesma imagem em um singular entardecer. “Quando visitei o Parque Ekeberg e andei pela paisagem que inspirou Munch há mais de 120 anos atrás, eu tive espontaneamente essa ideia. Então pedi ao grupo de pessoas com quem eu estava para gritar naquele local, evocando seus sentimentos. E imediatamente percebi que a ideia poderia ser realizada; que todos nós temos raiva e questões existenciais que tem que ser expressas. Isso parece tão necessário na sociedade de hoje como no tempo de Munch. E nisto reside a chave para Munch persistir em sua popularidade e no nosso reconhecimento de seu universo artístico. Para Munch, um passeio pelo parque resultou em pinturas, litografias e textos. Eu quero criar uma obra de arte interativa com o povo de Oslo, e junto com eles redescobrir no grito a satisfação de dar vazão às nossas emoções”[2] diz Abramovic.

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Marina Abramovic. Scream, 2013.

 

A performance realizada em 24 de outubro de 2013 iniciou com o fôlego de Marina Abramovic seguido de gritos que duraram cerca de dois minutos. Ela abriu as portas para que em seguida participassem os inúmeros inscritos na performance. A intensidade foi tanta que a policia interferiu, devido às queixas e receios da vizinhança pouco informada. O grito é um alarme. A carga emocional da pintura foi retomada por uma ação executada pelos corpos pulsantes da comunidade norueguesa. Esse processo foi filmado e fotografado e resultará na produção de um documentário, um filme de arte e um livro que devem ser lançados em breve.

Site Specific Performance

Marina Abramovic é conhecida por suas performances de longa duração que testam os limites do corpo provocando reflexões críticas e sensoriais. Em suas performances seu corpo está em jogo, exposto em situações de risco, de provocação, no desafio de mostrar não somente do que o corpo é capaz, mas, sobretudo, o que ele ainda pode.[3] A extensa duração intensifica os gestos muitas vezes levados à exaustão. O grito, como temática, já havia aparecido nas performances “Freeing the voice” (1976) e “AAAA-AAAA” (1978)[4], porém com dinâmicas diferentes. Em “Freeing the voice”, a artista está deitada com a cabeça pendurada para trás e grita até perder a voz, o que acontece três horas depois. Já em “AAAA-AAAA”, feita em parceria com o Ulay, as vozes se juntam e um grita na boca do outro como se a escuta se desse também pela boca. O que começa relativamente calmo, ou sob certo controle, com o passar do tempo, torna-se inaudível, os rostos se aproximam e se configuram dentro de um sentimento ambíguo de atração e agressão. Sustentar o grito até perder o fôlego, esvair a voz e sentir que o mesmo ar que preenche os dois corpos é capaz de revelar emoções ocultas.

 

 

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Marina Abramovic e Ulay. AAAA-AAAA, 1978

 

“O Grito” de Munch, no entanto, é trabalhado por Marina Abramovic com algumas diferenças. Um grito que parece vir do século XIX carregando toda barbárie da história, tal como o anjo de Paul Klee, que só poderia ter sido proferido nas circunstâncias em que surgia. Apesar do estatismo inerente a técnica, a pintura apresenta uma sensação de movimento devido à confluência de suas pinceladas. O grito de Munch está latente no movimento das linhas, nas cores carregadas e na intensidade das formas. Essa imagem foi excessivamente estudada e abordada por vários teóricos e artistas, tornando-se um ícone na história da arte. Trazer essa carga para o século XXI foi o desafio de Marina Abramovic. A artista faz uma citação ao quadro de Munch trazendo a potência para o corpo, tornando audível o grito lançado pela pintura. A moldura que provoca a realização da performance, foi pensada e instalada no parque Ekeberg, e somente poderia estar ali, pois surge a partir de uma ideia que nasce in loco e que faz referência direta ao ambiente do artista. Neste sentido, Marina Abramovic trabalha com perfomance site specific, realizada em um local que apresenta características físicas e simbólicas determinantes para a compreensão da obra. É somente no alto da colina do Ekebergparken que a moldura pode apresentar o recorte da paisagem de Oslo.

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Marina Abramovic e Ulay. The Lovers – The Great Wall Walk, 1988.

 

Essa noção de performance site specific aparece também em outros trabalhos da artista. É o caso de “The Lovers – The Great Wall Walk”, performance que marca o fim da intensa relação entre Marina Abramovic e Ulay que foram amantes e colaboradores durante muitos anos. Em 1988, eles saíram de extremos opostos da muralha da China, ele iniciou seu trajeto no Gobi Desert e ela no Yellow Sea, andaram 2.000 km até se encontrarem no meio do caminho: um longo ritual para dizer adeus. A performance durou 90 dias e o encontro se deu no dia 3 de junho de 1988. Henri-Pierre Jeudy em uma reflexão sobre o corpo como objeto de arte, observa que “convertido em um fabricante de rituais, o artista se coloca em posição de salvar a sociedade moderna de seu enfraquecimento simbólico.”[5] Assim, a potência ritualística é notável neste trabalho e a escolha do local é fundamental no que se refere a questões simbólicas e na longa distância que separa um ponto e outro.

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Marina Abramovic. The artist is present, 2010.

 

Este supostamente seria o último encontro entre Marina Abramovic e Ulay, não fosse a aparição de Ulay na performance “The artist is present”, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), em 2010, durante uma grande retrospectiva da artista. Sentada em uma cadeira, Abramovic encarava seu público que sentava individualmente em outra cadeira instalada a sua frente. Durante um minuto, sustentava o olhar silenciosamente. A presença de Ulay, em um desses momentos, foi desconcertante surpreendendo a reação da artista. Mas não é por acaso que essa performance foi realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York. Marina Abramovic leva em consideração o espaço do museu como legitimador da arte e a presença do artista como mito. A performance foi pensada para esta ocasião e sua força se deve também ao fato de ser apresentada no MOMA. O museu, além de atuar como espaço legitimador de arte, está localizado na cidade de Nova York, pólo cultural internacional, constituindo assim um espaço mítico dentro do universo artístico. Segundo a autora Miwon Kwon, “a arte site specific pode também significar uma maneira de extrair as dimensões históricas e sociais dos lugares para servir de forma diversificada ao impulso temático do artista, satisfazer perfis demográficos institucionais ou preencher necessidades fiscais da cidade.”[6] A performance The artist is present, portanto, é carregada de sentidos, tanto pelo carga emocional e individual que trata o olhar como obra, quanto pela carga simbólica do local.

O que resta

“Não há buscado sempre toda arte efêmera conservar seu rastro, seu traçado ou suas cartografias?”[7], nos pergunta Christine Buci-Gluksmann em seu livro “Estética do efêmero”. De fato, apesar do aspecto contraditório questionado por inúmeros teóricos[8], as performances permanecem na história através dos registros de imagens e vídeos. Muitas vezes, também, são as marcas remanescentes, os rastros deixados, que ficam no espaço remetendo ao acontecido. Atualmente, com o desenvolvimento da arte da performance aliado à profusão da tecnologia digital, os registros muitas vezes desdobram em novas produções evidenciando o processo de construção da ação.

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Público participa da performance de Marina Abramovic. Scream, 2013.

 

A moldura criada por Marina Abramovic para a realização do grito, ficará no parque de esculturas de Oslo como memória de uma performance coletiva, mas também como um convite para que a ação continue sendo repetida pelos próximos visitantes. “Quem sabe as pessoas assim como vão a Paris para ver a Torre Eiffel, não vão agora a Oslo para gritar”[9], diz a artista. O filme, o documentário e o livro que serão produzidos como resultado da performance, irão exibir o processo de elaboração do trabalho. Um processo potente que envolveu situações intensamente emocionais. “Nenhuma pessoa muda com a experiência do outro, O que você experimenta sempre vai estar contigo, é por isso que gosto de criar plataformas de interação, assim as pessoas podem experimentar algo por si mesmas.”[10]

Ekeberg, antes de ser um parque de esculturas, encontrava-se em más condições, abandonado e neglicenciado, até ser revitalizado graças a iniciativa de Ringnes. O parque de esculturas de caráter permanente foi idealizado por ele e se expande em 25 hm² de área preservada. Rosalyn Deutsch, quando analisa a atuação artística na esfera pública, observa que “a democracia dá surgimento ao espaço público, o reino da interação política, que aparece quando –na ausência de uma base adequada-o significado e a unidade da ordem social são a um só tempo constituídos e colocados em risco.” Ou seja, “ser público é estar exposto à alteridade”[11]. Tornados visíveis, os residentes em Oslo, de diferentes procedências, fizeram eco ao trabalho de Edvard Munch e contribuíram para que a ação de Marina Abramovic fosse intensificada. A vazão de gritos diante da paisagem norueguesa durou algumas horas, mas a moldura permanece ali, instalada na colina, como um convite aberto, rememorando um grito que fez história.

 

Bibliografia:

BISCHOFF, Ulrich. Edvard Munch. Taschen: Köln, 1997

BUCI-GLUKSMANN, Christine. La estética de lo efímero. Arena Libros: Madrid, 2006.

DEUTSCHE, Rosalyn. A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra in Concinnitas ano 10, volume 2, ano 15, Rio de Janeiro: 2009.

GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance. Martins Fontes: São Paulo, 2006.

JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Estação Liberdade: São Paulo, 2002

KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre Site Specificity in Temáticas, 2000

Websites:

http://www.munch150.no/

http://www.ekebergparken.com

http://elpais.com/elpais/2014/05/27/eps/1401205816_492745.html

https://interartive.org/2012/01/abramovic-breath-voice-void/

https://interartive.org/2010/05/marina-abramovic-moma/

[1] BISCHOFF, Ulrich. Edvard Munch. Ed. Taschen: Köln, 1997, p. 53

[2] ABRAMOVIC, Marina in http://www.munch150.no/en/Programme/Marina-Abramovic-Munch-592802 – tradução livre da autora (visitado em 06/06/2014)

[3]Cfr. JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Ed. Estação Liberdade: São Paulo, 2002

[4] https://interartive.org/2012/01/abramovic-breath-voice-void/ (visitado em 06/06/2014)

[5] JEUDY, H-P. Op Cit, p. 139

[6] KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre Site Specificity, p.180

[7] BUCI-GLUKSMANN, Christine. La estética de lo efímero, p.15

[8] Essa discussão é também levantada por Henri-Pierre Jeudy quando afirma que o registro em vídeo constitui a prova arquivada indispensável para a transmissão da notoriedade, contradizendo a postura da época em que surgiam as performances, que pretendia ir em contra aos convencionalismos do sistema de museus. O caráter efêmero e subversivo das performances, tal como aponta RoseLee Goldberg, principalmente em seu surgimento como expressão artística nos anos 70, momento em que a arte conceitual ganhava força, ampliava a valorização das idéias na arte presencial

[9] ABRAMOVIC, Marina in http://www.munch150.no/en/Programme/Marina-Abramovic-Munch-592802 – tradução livre da autora (visitado em 06/06/2014)

[10] Ibdem

[11] DEUTSCHE, Rosalyn. A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra in Concinnitas ano 10, volume 2, ano 15, Rio de Janeiro: 2009, p.176