Fole – Reverberações de um corpo que respira | MARIA CAROLINA VIEIRA

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Fole1Michele Moura, Fole, 2014. Foto: Cristiano Prim

Ela entrou na sala, caminhou sobre o chão branco, sentou-se e olhou para o público. Então, como que uma circunstância dada, o ar começou a lhe escapar. Não parou mais. Esvaziava-se rapidamente em pulsos de ar que em pouco se tornavam um estado que não pedia controle, era pulsar. Escapava-lhe o ar. Junto com ele, escapavam-lhe movimentos, som, emoções, sensações.

A artista guiava-se e era guiada por um pulsar que partiu da respiração mas que continuava em gerúndio, pulsando, até o fim da performance. Aos poucos, o movimento não era produzido pelo corpo ou pela respiração, mas em gerúndio, o movimento produzia-se em corpo, em respiração. Não era possível dizer se o respirar gerava o movimento ou se o movimento gerava o respirar, pois, em gerúndio, portava um devir – ela era um corpo acontecendo, transformando, atualizando.

Estava vestida com roupas de hoje, mas pelas bordas da roupa escapavam-lhe pinturas que remetiam a um passado longínquo, primitivo. Pintavam seu corpo, braços, mãos e peito, desenhos de linhas em tinta preta. Não só a pintura, mas a ação também me sugeria algo de rudimentar, restrita à qualquer tipo de condição primitiva do corpo. Via emergir no corpo dela um movimento que balbuciava seus estados, sensações e emoções. Transformando-se incansavelmente, parecia ela disponível sem medo ou pudor à vulnerabilidades.

Fole4Michele Moura, Fole, 2014. Foto: Cristiano Prim

Era um corpo que não cabia em si, precisava sair de si e, no tumulto de suas alterações, escapava-se em ar, som e movimento. Era um corpo perturbado e perturbante no que condiz a uma disponibilidade à agitação física e psíquica de seus estados, alimentados pelo respirar. Estados que se reverberam em movimentos progressivos, e vice versa movimentos que se reverberam em estados progressivos. Mas uma progressão de transformação do corpo, estruturada numa mutabilidade de condições corporais. Assim se dava sua dança, em pulsos e imprevisibilidades.

Esse pulso imprevisível gerava certa desorientação no corpo, mas mesmo desorientado, paradoxalmente, era um corpo de percepção ampliada e vibrátil. No espaço, ela se orientava por sua porosidade e pulsação. Escapava e expulsava sua sensorialidade.

Era possível acompanhar as mudanças do corpo, acompanhar a diferença que se aproximava a cada pulso. O corpo em ação da intérprete gerava uma experiência sinestésica, um pulso contagiante. Meu corpo pulsava com o dela e, ao olhar para a platéia, percebi que não era só o meu. Outros olhares e corpos eram apanhados pelo gerúndio daquele corpo mutável. Deles também escapava vibração.

A voz soprava dela como corpo. Ela parecia entender a voz como um espaço do corpo em ampliação ressonante; sua voz era um membro do corpo em movimento. O corpo era fole, matéria que expulsava ar, som e movimento. Microfones ampliavam o corpo/som em ecos e reverberações. Também o corpo/som manchou o espaço em cores de luz; reverberando, manchava também as tintas desenhadas no corpo da bailarina.

Depois de tudo isso, Michelle Moura dançou, ou melhor, era dança; ela era uma última dança nutrida por tudo que havia se passado até então. Eu poderia ver aquilo que acontecia em seu corpo por muito tempo. Uma dança em gerúndio, dançando, em sua mutação e escape.

((( Fole ))) teaser from Michelle Moura on Vimeo.