Decoro: vestígios e anacronismos na arquitetura colonial: Entrevista com Rodrigo Bastos | FERNANDA TRENTINI, MÔNICA JUERGENS e RAFAEL GASPAR

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Capa Rodrigo BastosLivro "A maravilhosa fábrica de virtudes"
de Rodrigo Bastos

Uma pesquisa que visa reaver os aspectos arquivados e esquecidos da arquitetura religiosa colonial é evocada por um olhar minucioso de Rodrigo Bastos, professor de arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina. Bastos é Arquiteto Urbanista, Engenheiro civil, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP, com Doutorado sanduiche no Departamento de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa. Em 2007, recebeu o Prêmio pelo melhor Ensaio crítico de Arquitetura e Urbanismo, 8º Prêmio Jovens Arquitetos, com o texto “Regularidade e Ordem das Povoações Mineiras no século XVIII”. Em 2010, recebeu o Prêmio Marta Rossetti Batista, de História da Arte e da Arquitetura, pela tese: “A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822)”, resultado de uma pesquisa meticulosa e engrandecedora e editada em livro pela EDUSP. A questão norteadora desta entrevista destina-se a destacar alguns elementos da arquitetura religiosa de nosso passado que foram pouco estudados1. Os documentos arquivados e os tratados artísticos e teológicos consultados indicam a importância dos ornamentos arquitetônicos, sobretudo como um vestígio de que Deus iluminou através de sua graça a engenhosidade do artista. Ou seja, “(...) o vestígio dá testemunho de um passo, de uma marcha, de uma dança, ou de um salto, de uma sucessão, de um impulso, de uma recaída, de um ir-ou-vir, de um transire. Não é uma ruína, que é o resto sulcado de uma presença, é apenas um toque diretamente no solo.”2 A pesquisa inicial partiu da harmonia entre arquitetura e música, sendo que no decorrer da análise o entrevistado notou a presença do decoro como um aspecto pujante, uma chave importante para se conhecer melhor a arquitetura do período colonial. Suas investigações pressupõem que o olhar esteja atento e sensível às fontes consultadas, pois (...) a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um conceito arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã.3

Também podemos conceber o arquivo como um dispositivo, ou seja, aquilo que aciona uma potência, oferecendo um manancial para a reflexão, compreendendo o dispositivo como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”.4 Assim, abrem-se questões desafiadoras, prementes para uma historiografia que se quer mais inquieta e curiosa. O decoro que permeia as arquiteturas coloniais – religiosas, civis e oficiais –, reafirma a necessidade de se procurar reconstituir historicamente as mentalidades vigentes nas obras sobre as quais nos debruçamos.

Fernanda Trentini, Mônica Juergens e Rafael Gaspar: Tomamos como base para nossa entrevista a sua tese “A maravilhosa fábrica de virtudes”, editada em livro pela EDUSP. Sua pesquisa problematiza o termo Barroco fazendo-o diferir do senso comum que existe no ensino de artes. Explique-nos sobre essa problemática?

Rodrigo Bastos: A pesquisa começou em 2001, quando fui para Belo Horizonte fazer o mestrado em arquitetura na UFMG. Relendo os tratados e documentos da época, percebi que havia uma hipótese importante, ainda não explorada na historiografia, que seria a discussão da arquitetura luso-brasileira à luz de conceitos vigentes naquele tempo, como o conceito de decoro. Geralmente, na historiografia estabelecida, há uma consagração de categorias dos séculos XIX e XX; categorias positivas, classificatórias e redutoras dessa produção artística que denominamos, desde o século XIX, de “barroca”. Quando estudamos os tratados artísticos vigentes àquela época, e também os documentos que nos informam dos processos de invenção e construção dessas arquiteturas e cidades, percebemos uma série de conceitos que foram obliterados, transformados ou esquecidos pela ciência moderna, e que nos oferecem outra compreensão, mais verossímil, dos sentidos dessa arte. Naquele tempo, regido por um processo de imitação e de preceitos retóricos e poéticos que visavam a docência, o deleite e a persuasão das pessoas, essas obras nos parecem completamente decorosas e convenientes. A arte que se discute é devida e comedida por essas finalidades, meios e preceitos. Para o nosso olhar moderno, pós-romântico, pós-iluminista, tudo isso se apresenta como exagerado e supérfluo. Mas quando começamos a reconstituir os conceitos de época, percebemos que cada elemento ali tem a sua razão de ser, a sua conveniência, e a doutrina do decoro, fundamental para aquele mundo, ilumina uma compreensão de que cada parte, cada elemento desse corpo é convenientemente pensado para adquirir ou atingir suas finalidades. A pesquisa reconstrói uma história pelo menos alternativa a essa já consagrada.

F.T., M.J., R.G.: Então você considera que o Barroco tem características próprias determinadas pelo decoro? O que seria esse decoro?

R.B.: Desde os gregos até pelo menos o séc. XIX, o decoro foi um preceito fundamental, pois regia justamente a conveniência de todas as partes e o todo de uma obra de arte. Há uma definição que deixa clara essa importância. É um trecho do De re aedificatoria, ou “Sobre a arte de construir”, de Leon Battista Alberti, escrito em 1452, que trata da beleza e do ornamento, no capítulo VI: “Tudo deve estar disposto por ordem, número, tamanho, disposição, forma, atentando-se para a natureza, para a prática, conveniência, às específicas funções do edifício de modo que cada parte do edifício resulte a nós indispensável, funcional e em plena harmonia como todas as outras”. O corpo, no caso do corpo artístico, o corpo da arquitetura, todo ele deve estar, portanto, “configurado e definido de modo a conciliar a necessidade e comodidade e principalmente cada parte esteja distribuída do melhor modo e no ponto exato, na ordem, lugar, articulação, posição, configuração que lhe for competente”. Esta definição parece que resume a totalidade das virtudes da obra artística e é exatamente isso. Os gregos o denominavam prépon, que os latinos traduziram como decor ou decorum. Eles perceberam, na antiguidade, que tudo na Natureza possui uma regularidade, uma ordem, uma harmonia, uma utilidade, uma beleza, um esplendor, e o conceito de prépon, ou decoro, permitia compreender essas virtudes que os homens deveriam imitar em suas ações e produções.

F.T., M.J., R.G.: E o decoro foi aplicado apenas na arte, na arquitetura e na cidade?

R.B.:  Ele não é simplesmente um conceito das artes, pois ele regia todas as ações, toda a ética daquele tempo. Todas as ações deveriam primar também pela conveniência e pela adequação. Tratados artísticos, de ética, de política e etiqueta povoam aquele mundo, orientando a que todo homem tenha a suas ações regidas pelas finalidades, orientada por princípios e meios convenientes. O decoro deveria reger todas as ações e produções humanas de modo que tudo estivesse orientado a ser igualmente conveniente e aprazível aos sentidos. É um conceito estendido a todos os âmbitos das ações humanas.

F.T., M.J., R.G.: E, na prática artística, de certa forma o decoro impossibilitaria, então, as novas experimentações artísticas? Como ficaria a questão, muito falada hoje, da singularidade de cada artista?

R.B.: Tendemos a compreender mais ou menos dessa forma, mas é um grande equívoco anacrônico. Se o conceito regia a correção, a eficácia, a autoridade de certos modelos, poderia parecer que ele reduziria ou resumiria, digamos assim, as idiossincrasias artísticas de cada um. No entanto, se atentarmos para o que é efetivamente o regime poético-retórico das artes daquele tempo, todos eles trabalhavam com a imitação. Havia modelos que deveriam ser imitados porque já haviam comprovado a sua eficácia, a sua correção. Mesmo os grandes artistas de todos os tempos, até o início do século XIX, agiram dessa maneira, imitaram tanto para aprender o ofício quanto para manter uma compreensão consagrada. Por isso, o título da Tese é “A Maravilhosa Fábrica de Virtudes”. Há uma máxima desse tempo do Gian Batistta Marino que diz o seguinte “é do artista o fim a maravilha”, e a maravilha era justamente a promoção dessa sorte de luz que a recepção tem quando observa uma imagem. É claro que havia artistas que se limitavam à cópia e mesmo os tratados acabam indicando esses que meramente copiavam. Mas há aqueles muito talentosos que, através do seu engenho, que é justamente a faculdade mental de criar conceitos e imagens, variavam nesse modelo imitado, provocando o maravilhamento – o reconhecimento do modelo e também a sua superação.

F.T., M.J., R.G.: Você poderia comentar a respeito do “rastro”, do “vestígio” em São Tomás de Aquino, que é a concepção que Jean-Luc Nancy retoma ao tratar da ideia do vestígio na arte?

R.B.: A doutrina escolástica defende que Deus está presente em vestígio na arte, como um rastro. Contra Lutero, que havia promulgado a perda da graça desde o pecado original, a doutrina cristã vai defender que a Graça ainda é, sim, carismática; ela é presente, porque Deus continua iluminado de carismas os engenhos artísticos capazes de provocar maravilha na recepção. Esse maravilhamento, esse encanto da coerência arquitetônica, da luminosidade do ornamento, do brilho da ornamentação, faria com que se pudesse reconhecer alí um vestígio da presença divina, pois Ele, Deus, teria iluminado através da graça o engenho do artista na invenção dessas obras. Então aquele que conhecesse a doutrina reconheceria não apenas o brilho em si do ornamento, seu efeito secundário, mas também uma refulgência mística como vestígio divino que iluminou através da graça o engenho artístico, a Causa primeira.

F.T., M.J., R.G.: O anacronismo é um conceito também presente em sua pesquisa, na forma de uma crítica. Em sua pesquisa, você alerta que o anacronismo pode ser prejudicial, por generalizar e fazer aproximações superficiais. Queremos que discorra um pouco sobre o anacronismo e mostre esse aspecto para nós.

R.B.:  Quero salientar que o risco do anacronismo, no modo como eu desenvolvo nos textos, no livro, compromete sob o ponto de vista da história, ou ainda, da historiografia. Conceitos anacrônicos transformam e modificam o valor de conceitos e procedimentos artísticos. Darei um exemplo. Praticamente toda historiografia que temos, tanto europeia quanto brasileira, latino-americana, reconhece, por exemplo, a “genialidade” de artistas ditos “barrocos”. A genialidade, como nós entendemos hoje, é um conceito romântico, posterior aquele mundo. Mas se reconhecermos os conceitos daquele tempo, nós jamais, historicamente, estritamente, baseados pela história daquele tempo, poderíamos reconhecê-los como geniais, mas, sim, engenhosos, porque todos eles não se preocupavam em criar uma obra original, inédita, e sim, partiam do pressuposto da imitação, do decoro, da decência, enfim, de uma série inumerável de conceitos que denominavam procedimentos de modo a causar admiração pela coerência, pela verossimilhança, pela engenhosidade, e não pelo ineditismo. Nesse tempo, o engenho pressupõe que há uma imitação decorosa, mas a genialidade implica que não haja imitação, e sim, que o artista, como se entende a partir do romantismo, é, doravante, um ser privilegiado por entrar em contato mágico com as forças da natureza, e não mais imitá-las. É o que pode acontecer se nos fixarmos exclusivamente numa historiografia que se constitua através de conceitos de outro tempo. Claro que, com isso, não quero questionar a validade dessa historiografia, ou de experimentos poéticos anacrônicos.

F.T., M.J., R.G.: Ao falar sobre o anacronismo, que neste contexto decoroso escapa aos malefícios da historiografia tradicional, podemos reportá-lo a Walter Benjamin. No texto “Tese sobre a história”, Benjamin faz corresponder felicidade com salvação, no ambiente laico é felicidade e no ambiente religioso é salvação. Em diálogo com a sua pesquisa, podemos dizer que nessa produção de beleza também aparece a promessa de felicidade da própria Eucaristia?

R.B.: Leon Battista Alberti inicia o tratado De re aedificatoria, comentado antes, dizendo mais ou menos essas palavras: “o principal dever do arquiteto é render felicidades à vida dos homens”. A vida do arquiteto se justificaria nesse sentido, fazendo com que suas obras correspondessem, simultaneamente, à beleza, à conveniência, à dignidade, como um bem comum sagrado, público e político. Sobre a colocação de Walter Benjamin em relação à ideia de salvação, de felicidade ou de beleza, lembro-me também de Baudelaire ativando aqueles dois sentidos de beleza, na modernidade – um eterno e imutável, e um histórico, efêmero, relativo à “moda” e seus contextos. Sempre há um substrato eterno de permanência e beleza em toda obra de arquitetura religiosa, apesar das vicissitudes modais porque passou na história, e em todas as culturas. É uma aproximação bastante instigante, para a qual deveríamos ter um novo encontro.

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1 Entrevista realizada em 23 de Outubro de 2013, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. CEART/ UDESC.

2 NANCY, Jean-Luc. O vestígio da arte. IN: HUCHET, Stéphane. Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, p. 304.

3DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relime Dumará, 2001, p. 50.

4AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.