Cidade-luz, cidade-sombra | ARTUR DE VARGAS GIORGI

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Em textos como Pequena história da fotografia, de 1931, e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de 1936, Walter Benjamin refere-se ao trabalho fotográfico de Eugène Atget como exemplar de um momento em que a fotografia convencional libera-se das “grandes vistas”, dos “lugares característicos” e do culto ao rosto humano, que encontrava seu último refúgio nos retratos, para buscar nas cidades as “coisas perdidas e transviadas”. Diz ele em seu ensaio sobre a obra de arte:

“O mérito inexcedível de Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso está sua significação política latente”[1].

E em Pequena história da fotografia:

“Quase sempre Atget passou ao largo das ‘grandes vistas e dos lugares característicos’, mas não negligenciou uma grande fila de fôrmas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos de mão, nem as mesas com os pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na mesma hora, nem no bordel da rua... nº 5, algarismo que aparece, em grande formato, em quatro diferentes locais da fachada. Mas curiosamente quase todas as imagens são vazias. [...] Esses lugares não são solitários, e sim privados de toda a atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores. Nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação ao seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda a intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores”[2].

Nas fotografias de Atget ficam os indícios, então, e a partir deles podemos ver os fantasmas que, embora invisíveis, estão bem ali, marcados, habitando os lugares. São os fantasmas “criminosos” que ergueram essa cidade que foi chamada por Benjamin de “Paris, capital do século XIX”. São os homens que disputam as condições de produção – e de vida – em uma sociedade de classes; os homens criadores e transmissores da cultura; sobretudo, entre todos, os homens “vencedores”, estes que podem impor uma tradição – que assim se desdobra em duas, ao menos: a dos opressores e a dos oprimidos. E nunca é demais lembrar: em 1940, em suas teses sobre o conceito de história (em sua sétima tese, mais precisamente) é Benjamin, novamente, quem diz: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”[3].

De fato, essa mesma Paris das passagens de ferro, vidro e elegantes mercadorias, Paris de largas ruas, iluminação pública, saneamento e arquitetura projetada, Paris configurada a partir, principalmente, de meados do século XIX, com as reformas urbanas concretizadas pelo barão Haussmann naquela que viria a ser conhecida, enquanto modelo “universal” do Ocidente, por “cidade-luz” – essa mesma Paris, digo, é resultado de um processo de domesticação da população e de racionalização e homogeneização do espaço: pessoas foram obrigatoriamente deslocadas de suas casas e vizinhanças, e antigas ruas e construções foram demolidas, delas não sobrando nem ruínas. Afinal, para além do embelezamento da cidade, as multidões deviam nela “escoar” com facilidade, realizando entre as fantasmagorias o seu trajeto sem experiência e sem revolta – propósito que foi evidentemente favorecido, já que as barricadas viram-se dificultadas por essa nova configuração urbana, de vias retas e abertas, onde o balaço de um canhão dispersaria sem esforço um grande número de revoltosos.

Como Atget, Benjamin faz ver que os indícios desse “crime” disseminam-se por toda parte, mesmo sutilmente: “Em meados do século passado, ainda não se sabia como se devia construir com ferro e vidro. Por isso o dia que se infiltra do alto através das vidraças por entre os suportes de ferro é tão sujo e nublado”, escreve ele em seu projeto das Passagens. Com o que se pode afirmar: através das técnicas da modernidade o dia é outro, tem outra “natureza”[4]; e toda a luz de Paris, seu esplendor, só faz acentuar a sombra, a opacidade dos processos históricos e culturais.

Rio de Janeiro é a “cidade-luz” brasileira. E, assim como em Paris, nela um plano de reformas urbanas pode ser visto por meio da sombra que projetou: como decorrência da conhecida “haussmannização” da cidade promovida por Pereira Passos no início do século XX (abertura de avenidas, “bota abaixo” dos cortiços...), favelas cresceram nas zonas centrais; a partir de 1960, essas favelas por sua vez se tornaram objeto de um novo plano (bio)político que previa seu deslocamento para regiões distantes das áreas “nobres”, ainda sob o mesmo pretexto de melhorar a cidade, higienizar a população e garantir-lhe adequadas condições de vida.

Para isso foram construídos conjuntos habitacionais, como o que viria a ser chamado Cidade de Deus. Afastados, no início esses conjuntos lampejavam ao menos algumas características da modernidade urbana vinda da capital francesa: arquitetura planejada e ruas em linhas retas, sem as “quebradas”, facilitando o policiamento – no caso de lá ele dever chegar; além de uma luz, que imagino fosse “suja e nublada”, própria ao esvaziamento dos lugares, como a que penetrava pelo vidro das passagens parisienses.

Creio que essa luz ainda agora reflete sobre o – que se entende por – “centro” da cidade de duas maneiras, imediatamente: privando-o de toda a sua atmosfera aurática e revelando, em contrapartida, uma série sem fim de indícios “criminosos”. Indícios que sem dúvida proliferam, hoje, de modo complexo: para além da luta de classes e da relação centro-periferia; e para além, também é certo, do “nosso” Rio de Janeiro, e mesmo sob os braços abertos de qualquer Cristo Redentor.

Ao sul do Brasil, 25 de junho de 2010.


[1] BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _________. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas v. 1). 7 ed. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 174.

[2] BENJAMIN, W. Pequena história da fotografia. In Ibdem, p. 101-102.

[3] BENJAMIN, W. Sobre o conceito da história. In Ibdem, p. 225.

[4] BENJAMIN, W. Passagens. Tradução do alemão: Irene Aron; tradução do francês: Cleonice P. B. Mourão. Willi Bolle (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p.190.