Cujo, 1997 O Pão do Corvo, 2001 Ó, 2008
Nuno Ramos (São Paulo, 1960) é um nome de destaque na literatura brasileira contemporânea. Esta afirmação o inscreve no campo literário com várias questões. Tais questões são permeadas pelo caráter de precisão e experimento no que diz respeito à linguagem, em uma escrita articulada entre a estrutura e a matéria amorfa. Com uma trajetória nas artes visuais, inclusive com uma forte convocação da presença da palavra em diversos trabalhos visuais, a obra literária de Nuno Ramos parece afirmar-se um território próprio junto à escritura, embora o autor faça deste um campo movediço: a palavra é posta em seus limites.
Estreando em livro com Cujo, de 1997, Nuno Ramos aponta para uma contínua morfologia da vida e de seu entorno, compreendendo objetos e as demais superfícies, que em Cujo condensam o nome de “pele”. O termo “pele” aqui pode ser ampliado como o revestimento da matéria, esta em sua contínua metamorfose. Em Cujo, Nuno Ramos é um inventor de “peles”, afinal foi nesta estreia que ele imprimiu o gesto de “inventar uma pele para tudo”. A partir de reflexões sobre tal revestimento consensualmente humano, a escrita aforismática no referido livro parece refletir o campo de aparição de objetos, de animais e de humanos, campo este que se concentra aparentemente na visão retiniana. “O disforme acaba organizando-se pelas bordas”, assinala Nuno Ramos em um dos fragmentos de Cujo. São estas bordas que o autor explora ao longo de seus livros, de seus textos, que oscilam entre o ensaio, a narrativa, o material plástico e o poema. Como em um jogo de bonecas russas, Nuno Ramos cria um vaivém em seus livros, onde das bordas de sua escrita emergem outros textos ou ainda algumas obras visuais.
Em O pão do corvo estas bordas situam-se mais organizadas. Pelo menos aparentemente. Publicado em 2001, o limite deste livro parece outro. Se em Cujo existia um forte caráter do aforisma, este, em O pão do corvo, se aproxima de um verbete, onde os limites do dicionário também entram em jogo. Sendo um modo de ampliar as bordas, o pequeno conjunto deste volume traz de modo mais contundente a materialidade das palavras, como no excerto do “verbete”, “um comunicado sobre as palavras”: “Palavras são feitas de matéria escura, quase sólida. Secam rapidamente, depois de pensadas ou ditas. Mas secam também antes que saiam da boca, quando deixamos de usá-las de maneira apropriada”. Em um jogo de novos usos, Nuno Ramos reitera um uso da palavra enquanto matéria, não nas artes visuais, mas no campo literário. Este projeto de materializar as palavras enquanto motivo tanto desloca a sintaxe como insere uma transitoriedade aos gestos pré-linguísticos, onde a palavra, inclusive, ocuparia um lugar performático. Em O pão do corvo isto não seria, portanto, uma metalinguagem, pois Nuno Ramos se vale mais do metamórfico do que do metafórico. Esta não é uma opção clara, já que ao longo do livro parece existir um conflito entre a palavra oral, fonte do sopro da vida e a palavra impressa, já fadada à morte, destituída de corpo e de ar humanos, criando assim, como afirmou o escritor, uma “sintaxe entre fósseis paralisados, carregados de matéria e de peso”. A palavra, enfim, ocuparia a soleira situada entre a vida e a morte.
Sete anos após O pão do corvo, foi publicado Ó, em 2008. O movimento de expansão da escrita – do aforismo ao verbete – do primeiro para o segundo livro aqui se torna outro: os textos de Nuno Ramos, em Ó, literalmente ganham corpo, um corpo que mantém algumas inflexões e que parece continuamente investigar o próprio corpo e seus limites na linguagem. Neste aspecto, em Manchas na pele, linguagem, narrativa que abre o livro, a linguagem permanece tensa, desconfiada do mundo dos nomes, ficando suspensa em um “reino da pergunta”: “Assim, suspenso, murmuro um nome confuso a cada ser que chama a minha atenção e toco com meu dedo a sua frágil solidez, fingindo que são homogêneos e contínuos.” A linguagem, geralmente posta em dúvida pelos limites das narrativas de Nuno Ramos, seria esse véu que ilude em torno da impressão de continuidade no mundo. Nuno Ramos, deste modo, combina pathos, drama e gesto – para citar Georges Didi-Huberman - para em Ó, em linhas gerais, abordar que somos seres descontínuos e que um abismo separa cada um de nós – para citar Georges Bataille. A linguagem seria uma ilusão que preenche esta lacuna.
Na cor deste abismo, o corpo, para Nuno Ramos, longe de render-se a uma simples metáfora, como ele bem definiu em uma entrevista cedida ao Suplemento Literário de Minas Gerais em novembro de 2009, seria “um boneco de piche”. Nesta definição, Nuno Ramos parece apontar para o que acontece em sua própria produção, parafraseando-o: “sempre pronta pra grudar em algo ou pra deixar que algo grude nela.”
PROJETOS, ROTEIROS, ENSAIOS, MEMÓRIA.
Com este subtítulo, Nuno Ramos publicou, em 2007, Ensaio geral. Neste volume de unidade duvidosa Nuno Ramos parece operar uma passagem entre mundos, sugerindo uma “simultaneidade poética”. Esta súbita vizinhança de distintas linguagens, tais como arte, futebol, canção, literatura, projetos de exposição, roteiros e um diário, marcam alguns cruzamentos em sua obra. Deste modo, mais do que afirmar um termo gasto como multimídia (que resume os procedimentos de pesquisa de linguagem com múltiplos materiais), seria possível afirmar um atravessamento anacrônico de distintos materiais (ou ainda de baixos materiais) para pensar a própria produção de Nuno Ramos. Empreendendo um esforço para resumir isto, poderíamos afirmar que existe uma aventura no campo da matéria efêmera, a vida. No ritmo desta produção, neste ano, em 2010, mais dois novos livros de Nuno Ramos serão lançados no Brasil. Tratam-se das narrativas de O mau vidraceiro e o livro de poemas Junco.
OS MÚLTIPLOS (BAIXOS) MATERIAIS.
Os materiais visuais verbalizados na escrita de Nuno Ramos literalmente podem ser vistos em diversos trabalhos do artista. Os baixos materiais empregados pelo artista consistem em vaselina, feltro, breu, cal, água, areia, onde estes criam um ambiente de viscosidade, amorfo, que internamente jogam com materiais de natureza estruturante tais como mármore, vidro, espelhos, rochas. Este conflito presente nos textos de Nuno Ramos aparecem no campo visual. Em obras como “111” (número que marca a quantidade de mortos pela ação da polícia em 1992 no Carandiru), além da resposta imediata do artista, existe uma presença dramática da palavra, que especificamente são os nomes de cada um dos presos mortos na chacina.
Pele, 1989 Craca, 1995/96 |fotos:Eduardo Ortega
Ainda em 1989, este conflito de materiais torna-se visível em Pele. Espalhado no chão do espaço expositivo, o trabalho, feito com breu, óleo, algodão gomado e tela de estuque, cria um campo amorfo cuja identificação figurativa pode ser feita apenas na identificação com uma forma de cabeça de cavalo. Outro trabalho que incorpora este conflito, de outro modo, é Craca. Participando da 46ª Bienal de Veneza, Craca é um vasto lençol marinho que nos dá a ideia de movimento. Nesta peça de alumínio fundido vem à superfície o material fossilizado tais como ossos, peixes, crânios, alcachofras, serpentes, enfim, restos orgânicos da vida animal e vegetal. Uma segunda escultura pode ser vista no Parque das Esculturas, no Ibirapuera, em São Paulo. Outra instalação do artista é o trabalho Morte das casas, de 2004. Este tem como ponto de partida o poema “Morte das casas de Ouro Preto”, de Carlos Drummond de Andrade (ver fragmento), onde um coral recita um fragmento do poema enquanto chove sobre as caixas de som.
libro-objeto: Balada, 1995 Morte das casas, 2004 |fotos:Eduardo Ortega
Além de trabalhos instalativos e escultóricos, Nuno Ramos ainda na sua trajetória como artista possui em sua produção a pintura, o vídeo e o livro-objeto. Sobre a produção do artista Nuno Ramos, existe no Brasil um livro-catálogo, publicado em 1997 e feito por críticos que acompanham sua produção: Lorenzo Mammí, Rodrigo Naves e Alberto Tassinari. Neste livro, existem mais de 150 reproduções em cor das obras tátil-visuais de Nuno Ramos.
Fragmento do poema “Morte das Casas de Ouro Preto”
Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram
já não veem. Também morrem.
Carlos Drummond de Andrade Do livro Claro Enigma.