Entre circuitos e fantasias | KAMILLA NUNES

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máquina audiovisual, máquina ficcional, máquina celibatária,
máquina cênica,
máquina performativa, máquina improdutiva,
máquina regente, máquina partitura, máquina sonora, máquina
que não existe em série, máquina musical, máquina imaginária,
máquina conjunta, máquina escultórica, máquina metafórica,
máquina colaborativa, máquina ruidosa, máquina infinita.

 

Sob a claraboia do Museu de Arte de Santa Catarina, dois hard cases de metal de aproximadamente 1m2 foram entregues por funcionários de uma transportadora. Dentro deles havia algumas caixas de papelão contendo instrumentos de madeira, fios, equipamentos eletrônicos, ferramentas de solda e outros cacarecos. Enquanto um artista desempacotava os itens enumerados acima e restaurava as máquinas avariadas durante o transporte, os outros organizavam a fiação e a montagem dos elementos que compõem a Máquina Orquestra. Finalmente desempacotadas e restauradas, as máquinas começaram a ocupar o espaço sob a claraboia. Foram posicionadas de maneira a poderem conversar tanto entre elas quanto com o público, formando uma espécie de semicírculo. Os fios, antes espalhados pelo chão, foram conectados a uma caixa que converte os sinais elétricos emitidos pelas pianolas (máquinas-regentes) em sinais MIDI (Musical Interface Digital Instruments) e a outra caixa que amplifica esses pulsos a fim de que tenham potência para mover os motores elétricos.

Como dispositivo fundamental para o funcionamento da Máquina Orquestra, esses motores elétricos acionam elementos das esculturas, como as hélices feitas com latas de Heineken e canudinhos. Essas esculturas sonoras são cuidadosamente conectadas umas às outras por minúsculas barras de metal, formando uma trama que as impede de cair quando impulsionadas. Outro elemento acionado é um pedaço de nylon que, ao girar, exerce a função de um arco que toca na única corda de um insólito instrumento monocórdio construído com forma de pão  produzindo um ruído breve e metálico. Outros objetos, como a "radinha" e as câmeras de vigilância que filmam e transmitem a orquestra – através de pequenos monitores – em tempo real, também são acionados pelas máquinas-regentes. Estas, por sua vez, são providas de partituras que operam pelo vazio: cada nota é marcada com um furo, ou uma sequência de furos, num papel milimetrado. Esses furos fecham circuitos elétricos emitindo pulsos cuja duração depende de seus tamanhos e da velocidade do motor que transporta o papel. Em outras palavras, as três máquinas-regentes são as responsáveis por acionar todas as outras.

Foi a nona vez que Roberto Freitas, O Grivo e Marcelo Comparini montaram essa instalação sonora performática ficcional. Nela, o que interessa é o deslocamento do sujeito diante de uma orquestra que produz um efeito de música sem música. Ao acrescentar silêncio às partituras, o que essas máquinas fazem ressoar são os ruídos do mundo. Elas se tornam receptáculos transitórios do espaço circundante. Seja qual for a escala dos sons produzidos pela Máquina Orquestra, há sempre uma dimensão metafísica. O silêncio que é transmitido pelas máquinas conduz precisamente a um paradoxo composto de duas palavras: silêncio sonoro. E por silêncio entende-se a possibilidade de escuta do entorno. A Máquina Orquestra entra, então, numa zona de indiscernibilidade profunda, há um fascínio pelo desconhecido, pela escuta crua, pelas micro-variações sonoras, pelos tons e microtons, pelo empilhamento de ficções, pela desordem.

De algum modo, essa instalação é composta por objetos que não obedecem a um imperativo de despojamento, por estarem deslocados de suas funções. E esse despojamento, para o sociólogo Jean Baudrillard, caracteriza a atribuição de uma função ao objeto, isto é, sua neutralização pela função. Por isso, recriar com fidelidade uma determinada obra (partitura) ou, ainda, dominar todos os recursos técnicos dos instrumentos são questões irrelevantes para a Máquina Orquestra. Até porque os recursos dos instrumentos são rudimentares e constantemente reinventados e adaptados pelos artistas. A eles cabe perceber e organizar o dinamismo interno da orquestra, intervir e transformar sua paisagem, configuração e ambientação sonoras.

Na ausência dos artistas, a Máquina Orquestra é acionada por um temporizador. A ele cabe o gesto de levare, comumente atribuído a um maestro para dar início ao primeiro movimento de uma orquestra. Por isso, a Máquina Orquestra não é apenas uma orquestra de máquinas, mas uma orquestra de máquinas que orquestram umas às outras. Como um conjunto de peças [esculturas] que operam juntas para executar um trabalho [audiovisual], a Máquina Orquestra transforma um tipo de movimento mecânico em sinais sistematicamente empregados numa ação performativa, sonora e improdutiva. Não é um teatro de gestos, mas um arranjo de objetos cotidianos deslocados de suas funções, de movimentos fragmentados e orquestrados pelas máquinas-regentes. Talvez se faça necessário observar que a euforia mecanicista propiciada pela Máquina Orquestra é melancólica, possui uma angústia particular que surge de aspectos sonoros indecifráveis, ruidosos e inconstantes.

A inutilidade da Máquina Orquestra provoca uma ruptura no ritmo da vida cotidiana, nos interroga acerca do que fazemos maquinalmente, inutilmente. De certa maneira, é uma máquina imaginária, mas que possui uma localização real no tempo e no espaço. E coloca em crise a ideia de presente, passado e futuro, afirmando a coexistência de matéria e antimatéria. Pela ótica da Patafísica, “a ciência das soluções imaginárias que atribui simbolicamente aos delineamentos as propriedades dos objetos descritos por suas virtualidades”, a Máquina Orquestra busca uma verdade no imediato, se interpõe entre o mundo e a opacidade do sujeito, cria problemas para inventar soluções.

O encontro entre Roberto Freitas, O Grivo e Marcelo Comparini se deu por diversas circunstâncias, pessoais e profissionais. Profissionais porque Roberto e Marcelo dividiram ateliê por muitos anos na cidade de São Paulo. E pessoais porque os quatro artistas compartilham de processos artísticos e referências comuns. A música, o movimento, a eletrônica e a invenção de máquinas sonoras, por exemplo, são elementos fundamentais de suas práticas artísticas. Para Roberto Freitas, a Máquina Orquestra é ficcional e “está baseada em jogos de polias, em correias de transmissão, em monitores e câmeras que, conectados, gastam impiedosamente energia para realizar quase nenhum trabalho, falamos aqui de uma máquina improdutiva e infecunda, uma espécie de máquina celibatária que, como o Grande Vidro (La mariée mise à nu par ses célibataires, même), de Marcel Duchamp, transforma amor erótico em pulsão de morte”.

De máquinas ficcionais os futuristas entendiam bem, em especial Luigi Russolo, artista italiano que publicou em 1913 o manifesto “A arte dos Ruídos”, inspirado na revolução industrial. Seu interesse nos ruídos das máquinas, dos motores, das multidões, o levou a inventar os “intonarumori”, instrumentos mecânicos capazes de traduzir realidades sonoras pouco usuais nos instrumentos de corda. Ele acreditava que o ruído nasceu com a invenção das máquinas e a consequência foi seu triunfo sobre a sensibilidade dos homens. Para Russolo, “é preciso romper este círculo estreito de sons puros e conquistar a variedade infinita dos ‘sons-ruídos’”. Embora estejamos separados por mais de cem anos desse manifesto, ele permanece atual; aliás, cada vez mais. Salvo raras exceções, as orquestras permanecem reduzidas a quatro ou cinco classes de instrumentos, diferentes no timbre do som: arco, cordas pinçadas, sopro em metal, sopro em madeira e percussão.

Na Máquina Orquestra, a variedade de ruídos é infinita. E poderíamos considerar que sua hipótese estava correta. Parafraseando Russolo, se em sua época existiam talvez mil máquinas diferentes, poderíamos distinguir mil ruídos diversos; hoje, com a multiplicação de novas máquinas, podemos distinguir dez, vinte ou trinta milhões de ruídos diversos, “não para imitá-los simplesmente, mas para combiná-los conforme nossa fantasia”. Todas as máquinas que compõem essa instalação foram construídas manualmente pelos artistas, que trabalharam como carpinteiros, eletricistas, cientistas, físicos, designers e matemáticos. Significa dizer que os ruídos produzidos pelas máquinas são singulares e não cumprem a função de representação, mas de apresentação de outras realidades possíveis, de outros espaços de imaginação e fantasia. Não são máquinas precisas mas, nas palavras de Roberto Freitas, a materialização de pensamentos provenientes dos debates entre os artistas. Para eles, fazer os objetos é uma maneira de conversar sobre a própria natureza do que estão fazendo. Máquina Orquestra surge, portanto, do encontro entre corpos e máquinas, entre silêncios e ruídos, entre programação e improvisação, entre tecnologia e precariedade, entre circuitos e fantasias, descarga e contenção.