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Imagen a partir de “Trying to avoid the sun” (2015), óleo sobre lienzo, 24x18cm, de Lorena Lannes.
Hospício é esse branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, esvaziado de sangue – e sempre outro”, a frase de Maura Lopes Cançado parece descrever a mutilação do circuito de desejos e afetos das mulheres internadas em manicômios brasileiros no início do século XX. Se o coração bombeasse muito sangue, reativando o fluxo de desejo e vida, a instituição intervinha, e violentamente.
“Há quatro anos, separou-se do esposo, alegando incompatibilidade de gênios; os irmãos estranharam tal procedimento, mas a observanda não lhes deu maiores explicações, procurando, desde então, viver separada de todos da família. Vivendo de seu trabalho numa repartição pública, a paciente raramente visitava os parentes, mas esses, já de algum tempo, vêm notando que as suas ideias não se achavam perfeitas.” (Prontuário de M. de P. apud VACARO, 2011, p.55)
Os prontuários de mulheres internadas no Hospital Nacional de Alienados e no Sanatório Pinel mostram que muitos diagnósticos se apoiavam fragilmente em discursos de familiares ou em comportamentos então considerados desviantes dos estereótipos de gênero. Como o caso de M. do C., internada por ser considerada “de gênio independente” e ter uma “inclinação amorosa que contrariava a vontade da família” (VACARO, 2011). Pode-se perfeitamente questionar as relações entre poder manicomial e outras formas de poder – como, por exemplo, o poder patriarcal. Se os mecanismos de poder trabalham de modo a esconder seu próprio funcionamento, analisar esses mecanismos e os meios através dos quais tornam sua própria existência invisível é fundamental para produzir técnicas de resistência.
A recente posse de Valencius Wurch na Comissão Nacional de Saúde Mental torna ainda mais urgente compreender em quais moldes essa resistência se formou e se forma. Wurch não é apenas um dos célebres defensores da manicomização no Brasil, mas também foi diretor de um dos maiores manicômios da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. A Dr. Eiras foi fechada em 2009, após de denúncias de maus tratos aos pacientes, que dormiam acorrentados em camas de concreto, sem cobertas ou roupas, não recebiam alimentação adequada e morriam de doenças de fácil controle e curáveis. Perante esse contexto terrível, cabe retomar a imagem usada por Franco Basaglia, médico responsável pela desmanicomização na Itália, era “um verdadeiro campo de concentração”.
Poder e normalização
“Gênio independente”, “não obedecia ao pai”, “separou-se do marido”, “escrevia livros”, “trabalhava muito”, “era preguiçosa”, “apaixonou-se por um rapaz”, “cantava o dia todo”, “desobedeceu ao patrão”, “reclamava do salário”, “inclinações políticas subversivas” essas condutas não podem ser consideradas patológicas per se e também não configuram infrações, no sentido legal do termo. No entanto, eram consideradas aberrações por escaparem às normas estabelecidas para as mulheres da época. A repetição tautológica desses elementos nos prontuários médicos de grandes manicômios brasileiros parecia querer afirmar que aquele comportamento era um traço desviante individual – e não o reflexo de uma mudança social. No início do século XX, o movimento feminista dava os primeiros passos, mulheres começavam a entrar nas universidades e na política.[1] Essa insurgência feminina foi vista como uma ameaça à ordem social estabelecida e houve diferentes tentativas de repressão para controlar uma suposta “crise da família”. Um dos mecanismos de controle era o poder manicomial.
O deslocamento de atos, condutas e maneiras de ser para o campo psiquiátrico é uma técnica de normalização. Essas técnicas não são apenas fruto do encontro entre normalidade e gênero, mas de um poder presente em diversas esferas da sociedade e que pretende padronizar formas de existência e colonizar o saber médico de acordo com seus interesses. Segundo Foucault (2001), o poder de normalização pesa como uma violência contínua que alguns (sempre os mesmos) exercem sobre outros (que também são sempre os mesmos). Um poder cuja função essencial é proibir, impedir e isolar, reproduzindo e perpetuando relações de poder. Na análise dos prontuários, é possível perceber como a realidade era ainda mais brutal quando entravam em jogo diferentes formas de opressão (classe, raça, gênero, orientação sexual).
“Um tipo de poder que não está ligado ao desconhecimento, mas que, ao contrário, só pode funcionar graças à formação de um saber, que é para ele tanto um efeito quanto uma condição de exercício.” (FOUCAULT, 2001, p. 45)
M. de P. tinha 21 anos quando foi internada no Sanatório Pinel, em São Paulo. Segundo Juliana Vocaro, que pesquisou os prontuários das mulheres internadas no Pinel na década de 1930, “todos os elementos elencados como demonstração de sua doença foram fornecidos pelo seu irmão”.
“Para mulheres, os limites eram muito mais rígidos, e elas tinham que se encaixar no que era ser mulher, mãe e esposa. […] Nem todas as mulheres que viveram na primeira metade do século XX escolheram viver a vida nas formas prescritas. Na população feminina do Sanatório Pinel, podemos encontrar inúmeras histórias de mulheres que buscaram certa autonomia frente às pressões que a sociedade lhes impunha, mas também mulheres que, mesmo desempenhando uma função a elas delegada, sofreram crises relacionadas a esses papéis. Essas manifestações, aos olhos das “instituições reguladoras”, foram vistas como sinais de demência e desequilíbrio mental.” (VACARO, 2011, pp. 10-11)
M. foi submetida a tratamento de choque com injeção de Cardiazol, medicação que provocava convulsões tão intensas que chegavam a fraturar ossos – inclusive da coluna. É interessante perceber como e para quê as medicações são utilizadas. Antes disso: analisar os conceitos de cura e doença. M. tomou sete injeções de Cardiazol em dois meses de internação.
De quê M. foi curada? Qual era a sua doença afinal?
Cultura manicomial
Não é possível afirmar que as mulheres internadas contra a própria vontade em manicômios não estavam passando por algum tipo de sofrimento psíquico. No entanto, chama a atenção que tanto a internação como a alta clínica ocorressem em função da vontade de familiares. Os diagnósticos eram feitos quase exclusivamente com base em relatos do pai, marido ou irmão. Muitas vezes categorias médicas eram substituídas por categorias morais na avaliação. Segundo Vacaro (2011), é possível notar que, apesar dos inúmeros elementos com que se operava na descrição da loucura, como ilusões e alucinações, existiam outras formas que, para os psiquiatras, não soavam menos científicas, como, por exemplo, pudor, indiferença pelo meio social ou pela família.
“De saída, já podemos colocar que a forma de se enxergar a loucura e comunicar o seu diagnóstico não partia somente de uma análise que se pretendia científica – e, portanto, livre de qualquer julgamento –, mas também da questão moral e dos papéis pré-estabelecidos, embutidos em todos os pareceres.” (VACARO, 2011, p. 44)
O mesmo se repete no caso de Elza, internada no Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, na década de 1920:
“A entrada de Elza no Pavilhão foi realizada através da polícia e partir da requisição do marido, o que revelou um processo de internamento típico, visto que a maioria dos sujeitos tidos como alienados eram internados por requisição policial ou por requisição de instituições similares, sendo também comum a incidência de pedidos feitos por familiares dos pacientes.” (MUÑOZ, 2010, p. 43)
“Segundo o Dr. Jaime, a ficha de observação foi produzida a partir dos relatos dados pelo marido da paciente. Provavelmente, isso ocorreu seja por conta da força do poder patriarcal e do poder reservado ao gênero masculino, ou então, em virtude da “atitude desconfiada” de Elza – e de seu silêncio.” (Idem, p. 48)
Não é raro encontrar familiares afirmando que as mulheres eram “loucas, mentirosas e inventavam coisas sobre a própria família”. Uma leitura contemporânea dos prontuários mostra claramente que a acusação de loucura também servia para encobrir abusos no espaço doméstico.
“Apaixonou-se por um rapaz e não queria mais voltar para casa, sendo os irmãos obrigados a usar de violência. […] Inventava toda sorte de mentiras relativas a questões familiares e os irmãos foram obrigados a baterem nela diversas vezes.” (Prontuário de C. F. apud VACARO, 2011, p. 51)
Elza tinha acabado de se separar do marido para viver com outro homem. C. F. queria ficar noiva de um rapaz que a família não aceitava.
A Reforma Psiquiátrica ameaçada: uma questão feminista
Na década de 1970, Foucault reavaliou intensamente a separação entre normalidade e loucura, mostrando que a normalidade foi tradicionalmente comparada à terra firme: uma ilha, um continente. Já a loucura seria a água intrusa repelida pela terra maciça. A loucura seria então uma figura movente, areia-movediça, esse espaço infinito, essa espuma, forma incerta que parece ser colocada em diferentes recipientes para assumir diferentes formas. Gênero e loucura são moldados de acordo com padrões históricos e culturais específicos. Para ambos, a exigência de conformidade com padrões de gênero e de normalidade. A não conformidade com padrões de gênero muitas vezes recebe o nome de loucura. Seja para desqualificar um discurso ou, em última instância, para excluir uma mulher da sociedade. Neste ponto, o movimento antimanicomial e o feminista se encontram, já que o aparato manicomial é usado também para reprimir, normalizar, excluir as diferenças de gênero.
Não se trata aqui de analisar as diferentes percepções da loucura, mas discutir as relações de poder que a constituem enquanto categoria, levando a sério a administração desses ambientes moldados pelo poder, que a tomaram por objeto. A loucura foi transformada em doença mental pelo poder manicomial em uma operação permeada por elementos culturais, sociais e políticos historicamente particulares e volúveis (FOUCAULT apud MUÑOZ, 2010).
“Como o saber psiquiátrico se constitui? Como ele consegue olhar para um determinado fenômeno, sujeito ou experiência e nomeá-lo? […] Essa é uma questão central, que precisa ser retomada: a discussão sobre o método de conhecimento da psiquiatria, a sua relação elementar com as relações de poder dessas instituições, o uso desse saber como forma de hegemonia, de dominação, de ordem pública, de controle social, de normalização social.” (AMARANTE, 2012)
A Reforma Psiquiátrica foi um movimento social constituído por pacientes, familiares e a comunidade – não foi um movimento de técnicos. Provocou uma abertura radical dos binarismos cura X doença e liberdade X exclusão. A Reforma reinscreveu a psiquiatria numa matriz de direitos humanos, questionando a ação do poder manicomial como mecanismo de manutenção das relações de poder.
Para Paulo Amarante, a Reforma Psiquiátrica é um processo sempre em expansão. Não está plenamente realizada. É um movimento que visa a desativação não apenas do manicômio como lugar físico, mas também se opõe ao poder manicomial e suas formas de entrelaçamento com outras formas de poder e, consequentemente, de controle. É preciso frisar que o slogan “por uma sociedade sem manicômios” não significa que pessoas em crises graves não serão cuidadas e internadas em enfermarias; significa uma mudança no paradigma manicomial. Em 1970, Franco Basaglia já constatava que manicômios são construídos com o objetivo de controlar e reprimir os trabalhadores que não respondem aos interesses do sistema capitalista. Eu acrescentaria que serviram também aos interesses racistas e patriarcais.
Falar dos casos dessas mulheres não é apenas falar do passado: é falar da construção do presente. Wurch foi contra a Reforma Psiquiátrica dando declarações exaltadas em jornais e revistas. A sua posse na Comissão Nacional de Saúde Mental é uma ameaça de que o poder manicomial seja novamente utilizado para reprimir e excluir grupos oprimidos. É também uma ameaça às novas formas de tratamento que aqueles que estão em sofrimento psíquico recebem depois da reforma.[2]
“Eu passei um tempo apanhando, apanhava muito. […] Eles me amarravam e [eu] ficava na cama amarrada até o outro dia. Hoje estou livre, moramos em casinhas. Estou feliz.” (depoimento de V. apud Maus tratos na Clínica Dr. Eiras, 2011)
Uma das cenas mais marcantes da desativação da Dr. Eiras foi quando derrubaram o muro que separava a clínica da comunidade. Para que essas velhas paisagens não se reconstituam, para que, em nome da normalidade, não se desumanize o outro, para que a loucura não seja julgada por valores ambíguos, é que novas formas de resistências vão surgindo.[3]
Notas
[1] Conheça a história de Antonieta de Barros em “Antonieta de Barros: protagonista de uma mudança“, por Gisele Falcari, do Afreaka, em GELEDÉS, 23/set/2015.
[2] A nova vida dos pacientes da Casa de Saúde Dr. Eiras: “CN Notícias: Dia nacional da luta contra os manicômios – 18/05/12”
[3] Acompanhe a ocupação Fora Valencius aqui.
Bibliografia
AMARANTE, Paulo. Conversando Sobre o SUS: Saúde Mental e o Processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. São Paulo – SP: IPUSP, 2012. 127 min.
ARBEX, Daniela. O Holocausto Brasileiro. Rio de Janeiro: Geração Editoria, 2013.
ENGEL, Magali Gouveia. Os Delírios da Razão: médicos, loucos e hospícios (1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
FACCHINETTI, Cristiana. As Insanas do Hospital Nacional de Alienados (1900-1939). Rio de Janeiro, 2008.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V. I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994
FOUCAULT Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MUÑOZ, Pedro Felipe Neves. Degeneração Atípica: Uma Incursão ao Arquivo de Elza. Rio de Janeiro, 2010.
VOCARO, Juliana Suckow. A Construção do Moderno e da Loucura: Mulheres no Sanatório Pinel de Pirituba (1929-1944). São Paulo, 2011.
Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.