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Denise Stutz em Finita, 2014. Foto: Cristiano Prim
O espetáculo de dança Finita, concebido e realizado pela dançarina Denise Stutz, foi resultado de um processo no qual ela, ao longo de dois anos, debruçou-se sobre o tema da ausência, perda e envelhecimento, sob a perspectiva da dança.
O ponto de partida foi uma carta escrita pela mãe da artista, o que gerou a busca cênica por um espetáculo que resultou complexo, e ao mesmo tempo simples. Das palavras de Denise publicadas em seu blog, podemos perceber um mapa processual: “A palavra, o texto, o silêncio como movimento. A proximidade do espectador sem implicar em uma ação direta, mas buscando no reconhecimento da plateia a afetividade da memória, a sensação do presente momento que encadeia o discurso são elementos que busco trabalhar neste projeto”1
Através dessas palavras, notamos características muito fortes que emergem no resultado cênico:
_ a tendência a convocar a plateia a se sentir cúmplice da ação espetacular, sendo sempre convidada a refletir sobre as lacunas criadas pela dinâmica entre ausência e presença propostas pelo espetáculo;
_ a presença da palavra como elemento orgânico no deslizamento entre teatro e dança proposto pela encenação, ampliando a relação poética entre a intérprete e seus interlocutores (a plateia), transformando a palavra em um baile sutil da memória diante dos olhares do público;
_ o minimalismo da cenografia amplia a busca da conquista da intérprete pelo domínio sobre o próprio espaço cênico e, por fim, sobre a totalidade do teatro. Em conclusão, esse minimalismo inicial é a própria potência em repouso que, instigada pela ação sobre a própria memória realizada pela dança de Denise, vai irradiar sentidos sobre cada integrante do público.
Os tópicos acima buscam sintetizar características que marcam a concepção e a materialidade cênica da obra. Mas como espectador, minhas considerações afetivas estão mais conectadas com as palavras que seguem.
Não sei bem por que razões me vieram à mente, e depois aos dedos que digitam este texto, as últimas palavras de Goethe. É bem conhecida a história (ou lenda, ou anedota, ou mentira das boas, sabe-se lá....) que antes de falecer o autor de Fausto teria sussurrado (ou gritado, ou simplesmente dito, sabe-se lá...) a frase "Luz... luz... mais luz". Depois de ontem, se eu estivesse ao lado de Goethe, teria satisfeito seu pedido oferecendo a ele uma sessão do espetáculo Finita. Sua autora, Denise Stutz, sabe produzir clarões, tanto em cena como em nossa percepção.
Finita expõe em discurso dançado, falado e rabiscado com o corpo pelo espaço um ensaio sobre o fim (e seu contrário) para dialogar com a questão da ausência (e seu contrário).
Fantasmas povoam o espaço da cena, a cada fala expressa, a cada vazio evocado pelos lampejos da memória em voz alta, a cada complemento sugerido pelo espaço deixado deliberadamente vazio.
A cena fica assombrada pelos espectros de um mundo que desapareceu mas que existe na poderosa máquina de lembrar que nos compõem e, muitas vezes, nos controla. Não é possível despedir-se daquilo que nos é tão caro. Daquilo que é nossa carne. Eis um adeus dolorido, exposto. Porém exposto em um viés contrário à autopiedade ou à exibição escancarada de uma intimidade em sofrimento: a plateia é convidada a presenciar um jogo suave e maduro, emocionante porém calcado em pensamento e razão.
A parceria envolve um jogo racional, o que torna a aparente leveza em um corre-corre contínuo entre cena e sentido, desvelando na superfície aparentemente simples das declarações e gestos a verdadeira profundidade da exposição a que Denise se propõe.
Finita pode ter uma dimensão que faz jus a seu título, mas isso só comprova que somos maiores: o espetáculo é um pedaço de mundo e de coisas que são, em verdade, sem fim.
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