Correspondência | RONALD POLITO

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Juiz de Fora, 9 de janeiro de 2011

Caro Victor:

Fui conferir a exposição de fotos de Wim Wenders no Masp, que você me indicou. Bonita, ele é um fotógrafo interessante, viajante incansável tentando apresentar o mundo através daquelas imagens. E vê-las sugere, naturalmente, correlações com o universo de Wenders e os problemas da arte contemporânea.

É curioso pensar, por exemplo, na foto que é o cartaz da exposição e tomá-la como um óleo sobre tela, precisamente de Edward Hooper. Só que aqui ela foi levemente apagada, esbranquiçada, e carcomida pelo tempo; afinal, não há glamour. Essa vontade da pintura na fotografia, bem como sua opção cromática, é análoga a alguns dos sistemas de cores com os quais Wenders tingiu seus filmes. Há um deles, que eu defendo como o melhor filme B de toda a história do cinema, que pouco é citado por seus fãs. Trata-se de Até o fim do mundo, de 1991, cujo roteiro ele escreveu com a inesquecível Solvaig Dommartin, que faz também o papel principal no filme. Nessa trama inclassificável, misturando ficção científica, perseguição policial, aventura, drama e comédia, no mínimo, também reencontramos a obsessão de Wenders pelos deslocamentos, só que aqui numa escala realmente planetária, pois a primeira parte do filme, que dura três horas, é uma enorme odisseia da atriz à caça do seu amor por diversos países. Tudo para chegarem à Austrália, num mundo já destruído, e conseguirem concluir o projeto de fazer os cegos enxergarem e, muito mais ainda, filmar os sonhos. Aqui atingimos o ponto. As imagens dos sonhos no filme são como que certas pinturas impressionistas em movimento. E elas levam à saturação máxima as cores de Paris, Texas ou de algumas das fotografias da mostra no Masp.

Uma pena eu não ter aqui um catálogo para poder olhar todas de novo e talvez comentar muitas delas. Mas me vem à cabeça uma outra questão que talvez seja importante. Não são fotos fenomenais, digamos assim, não são obra de um grande artista da fotografia. Mas, no entanto, elas funcionam. E muito. Creio que isso se deve, em grande parte, à escala, problema tão recorrente hoje na arte. Não que elas não possam funcionar em outras dimensões, mas que, naquelas dimensões, elas funcionam turbinadamente. Como as duas gigantescas fotos da roda-gigante e a foto de encerramento, com a cratera de um meteoro na Áustria. As fotos da roda-gigante realmente conseguem com propriedade que a gente se sinta completamente sozinho de um lado ou de outro dela, como as próprias paisagens de fundo: de uma foto, a natureza, de outra, a cultura, sem viva alma, secas, envelhecidas. Tal como nessas duas, seria importante não perder de vista que há alguma “narração” na disposição das fotos, particularmente pela escolha da última, profundamente cósmica, levando-nos direto ao big bang do início ou ao bum do fim.

É claro que as fotografias também funcionam por outros motivos além da escala, como pela sagacidade das escolhas de tema e ângulo: por exemplo, de uma parede cravejada de balas, mas cujos buracos tiveram as bordas pintadas de vermelho. À distância, com o ângulo frontal, a ilusão de que são flores é completa. Ou outro exemplo: de dezenas de chineses turisticamente observando um encouraçado com mais canhões que um ouriço. Mas talvez a mais estranha e reveladora foto da exposição, e em nenhuma hipótese por sua beleza, seja a que Wenders fez de São Paulo. Eu estava acompanhado de um paulista da gema, que ficou horrorizado com ela. Aí eu pensei com meus botões: “O que ele queria? A duvidosa escultura ‘Monumento às bandeiras’?” Eu, pelo contrário, li na imagem um poder de síntese surpreendente do que é aquela cidade. Afinal, Wenders escolheu um traste ou dejeto de nossos sistemas de funcionamento urbano, no caso, instalações no alto de um edifício, que praticamente nunca podemos ver, deixando no horizonte infinito a curvatura da cidade-sem-fim, levemente se desfocando na neblina-poluição. Nenhuma pessoa, então. Em primeiro plano, ficam gritando aqueles latões e tubulações e engrenagens. Que em nada diferem da imagem de quase qualquer parte da cidade estabanada, com seus infinitos sistemas de instalações e conexões arruinados, envelhecidos. A fotografia de Wenders é profundamente indigesta, nauseante e pesada, o que é um modo de São Paulo poder aparecer de forma bem persuasiva.

Algumas fotos podem parecer mais corriqueiras, ainda que chamativas, como as do Japão, mas na maioria Wenders acerta. Consegue uma imagem não capaz de exatamente sintetizar toda uma cultura, mas de colocar-nos em relação com aspectos problemáticos de seu funcionamento. E geralmente sem cair no lugar comum e nem na excentricidade, o que já é pra lá de muito. Obrigado pela indicação!

Abraço do
Ronald

* correspondência originalmente publicada no blog noticias de três linhas, de Victor da Rosa, destinatário do e-card.