español
1.
A presença do corpo na arte contemporânea é um tema inesgotável. Praticamente uma tarefa infinita, sempre por se fazer, mesmo que se opere em recortes cada vez mais protegidos e resguardados metodologicamente. Tarefa por se fazer, no entanto, é a de investigar a presença do corpo do próprio artista na imagem. Assim, um dos possíveis pontos iniciais para tal investigação seria entender o corpo do artista na sua obra como um gesto autobiográfico. Ao modo de um espelho, o artista refletiria o seu corpo, e nesse reflexo vazaria um “eu”, fazendo de sua obra, portanto, um rastro autobiográfico. No entanto, seria interessante deixar de lado o “autobiográfico”, pelo menos inicialmente, embora a imagem do espelho fique impregnada de um corpo que fala de si.
O espelho como um objeto pode criar um outro desvio. Um desvio dele mesmo como apenas aquilo que reflete em sua superfície. Talvez na opacidade de um texto literário encontremos um pequeno desvio para o espelho. E esse pequeno desvio surge de uma leitura de Clarice Lispector (1920 – 1977) feita por Raul Antelo. Trata-se de Objecto textual (1997). Nesse texto, Antelo discute a autonomia do objeto, ou ainda, o objetivo, a meta, o fim de uma ação (ANTELO, 1997, p. 28). Na Clarice de Água viva, a pergunta em torno do objeto coincide com o que é um espelho. Coincidência, aliás, maliciosa, pensando na obra de uma escritora onde esse “eu” é tão ambíguo e tão pungente. Enfim, Clarice pergunta o que é um espelho. Após lançar a pergunta, ela diz que aquele que olha um espelho, isto é, que olha para o espelho sem se ver, aquele que entende que sua profundidade é seu vazio e que caminha dentro de sua transparência sem deixar “o vestígio de sua própria imagem”, esse alguém, diz-nos Clarice, é aquele que percebeu o “seu mistério de coisa” (ANTELO, 1997, p. 29). Assim, mais que um “eu” (ou menos), quem sabe se a questão do corpo na arte contemporânea não seria uma passagem do vestígio para a vertigem? Por esse viés, trata-se de um contato do corpo, que imprime sua matéria em um objeto (como vídeo, instalação, enfim, imagem) e que, após esse contato, fica-se o vestígio da presença elevado à potência da vertigem tanto para o artista como para quem troca olhares com a obra. E dessa experiência a literatura e a teoria não tiveram de se privar, para pontuar a própria escritura de Clarice Lispector, bem como as perspectivas teórico-críticas de Raul Antelo.
Desse modo, ainda podemos nos deter aos objetos, a partir do ensaio do teórico brasileiro Haroldo de Campos (1929 – 2003) intitulado “Kurt Schwitters ou o júbilo do objeto”, que também é uma leitura com pontos luminosos para a questão do vestígio e da vertigem. Do ensaio de Haroldo de Campos, seria interessante apresentar “a descoberta do mundo perdido do objeto” (CAMPOS, 1977, p. 35), enfim, o objeto em si. Essa descoberta se torna evidente por conta de um olhar aos vestígios do mundo moderno. Tudo aquilo que é tomado como lixo. Aquilo que foi arremessado não apenas porque não apresenta mais um estado de serventia, mas provavelmente porque não reflete mais um desejo de quem o possuía. Trata-se de lascas, aparas e detritos. A leitura de Haroldo de Campos para a arte MERZ, de Kurt Schwitters (1887 – 1948), também se sustentaria para a obra de Cildo Meireles (1948), Espelho cego, que data dos anos setenta. No entanto, Cildo Meireles dá um golpe na supremacia da visão. Ao abrir mão da superfície que reflete o artista brasileiro, utiliza uma massa cinza – informe – que apresenta como característica o toque dos dedos. Cildo explora o “mistério de coisa”, abrindo mão do espelho como um objeto que se anula para refletir aquele que se olha e não o olha.
Estamos falando ainda de um “mistério de coisa”, mistério este que envolve pesquisa de linguagem e júbilos de objetos como o próprio trabalho artístico. Esse é um primeiro momento para, em seguida, darmos um passo para pensar o corpo como um vestígio, cuja tensão fica para uma leitura da obra de Milena Travassos: objeto – corpo – obra. Diante de uma operação que implica a passagem do vestígio para a vertigem, não é menos aporético no campo da imagem, a abismal imagem do corpo na imagem se configurando como prática escritural e sensória (que não se resume apenas ao biográfico, embora o contenha em algum de seus caminhos), mas uma suspensão do corpo em relação ao objeto e à obra.
2.
Adentrando pelo aporético da arte contemporânea, opera-se um corte. É em tal corte que se chega a um detalhe de uma cena que, mais que imputar um exemplo figurativo, é um convite para continuar a discussão sobre o corpo na arte contemporânea brasileira. A cena é a seguinte: Um espelho de água reflete um corpo que balança levemente. No reflexo, junto ao movimento sutil do corpo, nota-se um pequeno conjunto de nuvens na superfície esverdeada da água. As nuvens, mais em evidência, deixam o corpo balançando à contraluz, desenhando basicamente sua silhueta indo e vindo. Enfim, sobre a água, em meio a nuvens, a sombra de um corpo.
O movimento de ir e vir possui uma variação mínima, com uma velocidade constante a olho nu. O impulso que o corpo toma para continuar a se mover mantém o movimento contínuo. Trata-se de um corpo suspenso que, ao pender-se em um objeto tão lúdico como o balanço, sugere uma contradição trágica, uma inevitável melancolia de quem assiste e que não está apartado de tal situação, mas, pelo contrário, o corpo de quem observa o corpo que balança também se faz suspenso. Esse detalhe descrito está na instalação Vertigem (2006), de Milena Travassos (Recife, 1976).
Se a discussão inicial em torno da presença do corpo (do artista) na arte contemporânea brasileira aponta um traço autobiográfico como um dos caminhos de leitura, sem dúvida, esse seria um dos caminhos para acessar a obra de Milena Travassos. A hipótese, ainda em germe e que se esboça de um modo geral, seria a de tomar um momento do corpo na arte brasileira em que sua sensorialidade não seria apenas um locus do “eu” ou um objeto, mas uma rede de efeitos fantasmáticos que ele evoca. Nesse aspecto, o panorama de Viviane Matesco em “O corpo na arte brasileira contemporânea” pontua historicamente o percurso do corpo, desde a introdução de happening, por Wesley Duke Lee e Nelson Leiner, nos anos sessenta, até as experimentações tecnológicas dos anos oitenta e noventa. Mais que fazer um percurso diacrônico, o que chama a atenção para o artigo de Matesco, nesse sentido, é o efeito fantasmático do corpo que interessa, por exemplo, tanto para Lygia Clark quanto para Tunga. Em Tunga, essa fantasmática lhe daria um uso de uma “plástica do desejo” (MATESCO, 2006, p. 535). Essa “plástica do desejo” não estaria distante das linhas de força tencionadas em Vertigem, de Milena Travassos, com um rastro do autobiográfico.
No entanto, o tempo do autobiográfico traria uma inscrição que objetiva e circunscreve o corpo do artista na imagem. Talvez, as imagens de júbilo do objeto a respeito da obra de Schwitters, ou o mergulho no mistério da coisa, de Cildo Meireles, tragam esse tempo em seus vestígios. E aqui nota-se uma distinção entre os vestígios dos objetos e as marcas do corpo. Isso, nesse momento, aparece como uma primeira suspeita que deve ser investigada no decorrer da pesquisa em torno da obra de Milena Travassos. No momento, esse tipo de vestígio fica mais evidente nas ações de registro, mais ligadas à performance ou situadas em um nível que varia entre o documental e o etnográfico. A pesquisa em torno das estratégias ficcionais de inserção do corpo para o apagamento autobiográfico busca pensar o uso das estratégias que, para se valer do fabulativo e do ficcional, não abrem mão do documento, da aventura etnográfica e do traço do registro para inscrever o corpo em outro tempo. Essa parece ser a estratégia de Milena Travassos.
Com Vertigem, a artista abre uma outra temporalidade no contemporâneo (e o contemporâneo permite seu contratempo). O primeiro ponto que marca esse contratempo outro seria o traço pictural inscrito no vídeo. O traço pictural – ut pictura poesis – na tela de Vertigem não enfatiza a técnica, o tempo presente e outros vestígios do mundo moderno, para aludir mais uma vez a diferença com o objeto em júbilo, do ensaio de Haroldo de Campos. A ênfase está na possibilidade dessa tecnologia abrir outros tempos e se abolir. Um outro tempo que é marcado pelo ritmo do corpo que balança. Um corpo que é, sobretudo, observado pela sua postura e posição. O corpo está de costas para quem olha. E que balança.
O corpo em questão, em Vertigem, reforça sua presença intempestiva. O gesto do corpo, em sua nudez, que se move em um balanço, sobre um fosso, nos traz um anacronismo, uma espécie de assombro de outros tempos, que na Idade Média incidiria com o maravilhamento, uma mirabilia e, por sua vez, não renuncia da Antiguidade todo um exotismo que alimenta a imaginação, como assinala Jurgis Baltrusaitis, em Le Moyen-Âge fantastique (1993, p. 7) ou o efeito do nu feminino na Grécia, que pela sua volúpia sai da paralisia do sagrado (2008, p. 190), como enfatizou André Malraux, no seu Museu Imaginário.
E essa passagem do vestígio à vertigem parece ser tanto a documentação quanto a etnografia levada por Milena Travassos ao seu vórtice. Documento e olhar etnográfico se confundem em um olhar que busca camadas sensíveis na imagem de Vertigem. Impossível separá-las. Milena não renuncia um exotismo que alimenta a imaginação. Essa é uma afirmação frágil para pontuar uma obra brasileira contemporânea, como Vertigem. Ou ainda a produção de Milena Travassos. Um exotismo que alimenta a imaginação, para além da Antiguidade e da Idade Média, passa pelo Renascimento, com uma forte mudança topológica do imaginário. Se antes os confins do Oriente eram estimulantes para a imaginação europeia, esses confins imaginários, passam a se localizar nas Américas com o advento das expansões europeias a partir do século XV. A inscrição de um lugar exótico que alimentou a episteme europeia pré-científica até o século XVIII. O estímulo à imaginação também passa pela formação filosófica e teórica do pensamento clássico até as mais refinadas reflexões teóricas da atualidade. Para um recorte impossível de deter-se aqui, tema para uma tese, poderíamos eleger algo entre os antropófagos de Michel de Montaigne à enciclopédia chinesa borgiana, de Michel Foucault, cujo riso lhe gerou As palavras e as coisas.
3.
No início do século XXI, um corpo balança, pende na imagem. Um corpo que parece portar tempos antigos e, simultaneamente, sendo-lhes alheio. Um corpo que traz um acúmulo de camadas com axiomas incompletos, raciocínios delirantes ou inconclusos. Um corpo que não pertence apenas – biograficamente – a Milena Travassos. Um corpo de vértebras frágeis porque estas se apresentam exteriores e são de vidro se atentarmos para a anatomia da mulher que balança.
Em Vertigem, o corpo que nos dá as costas expõe suas vértebras duplamente frágeis. Duplamente porque materialmente são de vidro e, em seguida, mesmo transparentes, são visíveis. Visibilidade que consequentemente revela sua fragilidade. Esse corpo na instalação de Milena Travassos marca uma topografia frágil do seu ambiente, a América do Sul, que ainda possui os seus fantasmas. Nesses fantasmas, incluímos os viajantes do Renascimento e todo um imaginário maravilhoso do Medievo, que ainda é constatável nas culturas orais e populares do Nordeste do Brasil, região onde as imagens de Vertigem foram elaboradas, no Ceará. Se, por um lado, é interessante marcar esse lugar, por outro, Vertigem parece prescindir do lugar como referência, pois o estado de suspensão do trabalho desloca a imagem de um tempo e espaço específicos.
Quando afirmamos que Vertigem nos dá uma outra temporalidade frente ao contemporâneo, talvez seja preciso retornar às vértebras de vidro do corpo que balança diante do abismo. Evidentemente que, diante das imagens dessa obra, observamos que não se trata de uma metáfora, e sim uma descrição da imagem. O tilintar das vértebras que se tocam possui uma acuidade visual. Nesse sentido, mais uma vez, o corpo é intempestivo porque nos dá as costas. Dá-nos as costas e dá as costas ao tempo presente, ao contemporâneo e que, estranhamente, nesse gesto parece afirmá-lo justamente porque lhe dá as costas.
Esse nível de leitura da imagem ocorre a partir do intempestivo Friedrich Nietzsche e, mais recentemente, com Giorgio Agamben em sua pergunta “O que é o contemporâneo?”. Para responder à pergunta, Agamben necessita da imagem das vértebras. As vértebras se encontram justamente em um poema de 1923, de Óssip Mandelstam, intitulado “O século”: “Meu século, minha fera, quem poderá/ olhar-te dentro dos olhos/ e soldar com o seu sangue/ as vértebras de dois séculos?” (AGAMBEN, 2009, p. 60). Não apenas Agamben se vale das vértebras, como também Alain Badiou, em O século, vale- se do mesmo poema para pensar a trajetória do século XX.
O corpo, em Vertigem, continua a balançar completada a primeira década do século XXI. Um outro motivo para conferir a ação suspensa de balançar a outra abertura temporal. Não aquela do tempo diacrônico, que nos transmite a sucessão, em cujo thélos reside a ideia de progresso, evolução, superação. Milena Travassos nos apresenta um tempo de metamorfoses, onde os tempos estão em movimento, bem como a história das imagens. Assim, sem pensar no fim desse movimento é que talvez seja interessante, como exercício de imaginação, pensar que cada imagem continua em ação e que cada tempo – interrompido e descontínuo – continua num estágio de suspensão, em outro espaço, em estágio de matéria. O lento balançar do corpo em Vertigem reivindica essa inscrição. Desse modo, cada corpo ou estado corpóreo permanece em algum lugar, agindo e sofrendo as ações do tempo, como o corpo compósito de Milena Travassos, com sua frágil coluna vertebral transparente. Mais uma vez, não se trata de uma metáfora. Trata-se de uma outra possibilidade de permanecer, mas uma permanência que não exclui de seu horizonte o esquecimento, como o corpo que continua balançando no tempo do mito.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009.
ANTELO, Raul. Objecto textual. São Paulo: Memorial de América Latina, 1997.
BADIOU, Alain. Le siècle. Paris, Seuil, 2005.
BALTRUSAITIS, Jurgis. Le Moyen-Âge fantastique. Paris: Flammarion, 1993.
CAMPOS, Haroldo. “Kurt Schwitters ou o júbilo do objeto”. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.
MALRAUX, André. Le Musée Imaginaire. Paris: Folio, 2008.
MATESCO, Viviane. “O corpo na arte brasileira contemporânea”. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p. 531-539.
Este texto é a versão reduzida do ensaio “Milena Travassos: o contemporâneo como um in illo tempore”. O ensaio, a partir da obra de Milena Travassos, faz parte da pesquisa Três ou mais usos do corpo na arte brasileira contemporânea, contemplada pela Bolsa de Produção Crítica em Artes Visuais, FUNARTE 2010.