Imagem e segredo - entrevista com Egidio Rocci | VICTOR DA ROSA

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Como tentativa de aproximação inicial, talvez seja interessante tocar a produção visual de Egídio Rocci pela imagem do segredo. Em algumas linhas, seria possível anotar toda a relação que o artista mantém com o mobiliário como tentativa de esconder. Ainda, nas apropriações que o artista faz de todo tipo de mobiliário parece sempre haver uma intimidade que se mostra ou, por outro lado, que se refaz; um segredo que se dispersa ou, por outra, se condensa. Depois, em outro roteiro de leitura, aparecem os móveis que, ao serem constituídos por uma falta deliberada - uma cadeira que perde uma de suas pernas, por exemplo - precisam de algo que torne possível seu reequilíbrio, um contrapeso. Dessa maneira, seria possível dizer de uma estrutura que se quebra e, por isso mesmo, exibe sua fraqueza. O artista parece insinuar, finalmente, que o segredo é a medida de toda fragilidade.  Na conversa que segue, feita pelo correio eletrônico em dois tempos, o artista fala um pouco de como encaminhou sua pesquisa visual nestes últimos anos, de suas relações com a Universidade, com a história da Arte e comenta algumas de suas obras.

Victor da Rosa - Em uma série de seus trabalhos, você parte de mobiliários nobres - é possível ainda reconhecê-los, você faz questão de deixar seus vestígios - para "descontruir" ou mesmo "esparramar" suas formas e seu funcionamento no espaço. Em séries anteriores, em uma pesquisa que chamou de "Mecanismos de Reequilíbrio", você constrói a partir de móveis muito precários. Tem uma informação nisso que une as pesquisas: apropriação de mobiliários. E tem uma informação que aponta para duas linhas de pesquisa distintas: o nobre e o precário.

Egídio Rocci - Realmente, nas obras da série Junções, os dois objetos escolhidos se convertem num terceiro, híbrido, sem função definida, mas sem perder, entretanto, os vestígios da sua utilidade primeira. Tomando como exemplo a obra que junta o arquivo azul e o armário: o que passa a existir, para além da junção, é a explicitação das diferenças (colorido x opaco, aço x madeira, linhas retas x adornos). Na série Mecanismos de Reequilíbrio, também há a junção, mas como tentativa de manter a função do objeto. São como remendos, ajustes, soluções que servem para que uma cadeira continue a ser uma cadeira, por exemplo.

Victor - Procurando tatear seus procedimentos, encontro uma palavra e outra que servem de entrada para o entendimento de algumas das suas questões, como "movimento", "junções", "equilíbrio". Em Junções, você se apropria de dois ou mais objetos para criar outro, o seu. Em Movimento, você parece explicitar o que existe de segredo nos móveis, aquilo que escondem - sua mecânica e, finalmente, seu movimento (estático). Já em Equilíbrio, aparecem questões como a falta - você geralmente tira coisas dos objetos que trazem uma permanência - e o improviso, os modos como a primeira falta precisa ser resolvida. Fico com a impressão de que existe uma aparente distância entre estas chaves de leitura, mas uma profunda relação entre tudo.

Egídio - Sua síntese sobre meus procedimentos nas séries a que me dedico estão perfeitas. Gosto particularmente de uma frase que você utiliza para definir a série Movimentos: "... explicitar o que existe de segredo nos móveis". É um bom ângulo para se examinar a questão. Não sei se você conhece uma obra minha, em que um trenzinho corre por dentro de quatro móveis distintos, sendo visível apenas no momento em que passa por um armário de vidro. Essa obra talvez seja uma boa síntese das outras da mesma série. O caminho que o trenzinho faz não deixa de ser uma costura, uma forma de cerzir os móveis, de juntá-los por dentro. Essa "costura" pode ser o elemento comum a todas as séries. Em todas elas há um procedimento de junção, de "implante", que pressupõe uma cicatrização, e a fusão orgânica das peças.

Tudo isso desaparece nas obras da exposição que fiz no Paço das Artes. Os móveis se interpenetram sem se tocarem, algumas frações de espaço são compartilhadas por dois móveis distintos, mas não há aquela relação orgânica. Há uma extrema ordem, um caráter quase construtivista que, no entanto, se faz através da utilização de elementos reconhecíveis, os móveis. Ainda estou na fase de estranhamento em relação a esses últimos trabalhos. Não tenho formação acadêmica em Artes, e a leitura que faço das minhas obras vem sempre a reboque, são classificações que o olhar encontra após muito tempo da obra pronta, após muito estranhamento.

Victor - Em linhas gerais, gosto muito do que se chamou de "minimalismo", dos artistas que foram incluídos dentro deste nome, e às vezes vejo algo em parte do seu trabalho que me remete a algumas questões daqueles trabalhos da década de 60. Primeiro, uma grande preocupação com o acabamento. Seus objetos, mesmo quando precários, costumam ser muito bonitos. Depois, penso na repetição, em certo olhar para o mecânico que você parece lançar aos móveis. Por outro lado, os materiais que você usa são carregados pelo simbólico, pela história que trazem, e geralmente são retirados de interiores. Você pensa no minimalismo? - ele é importante para seu processo?

Egídio - Posso te responder, baseado no que disse acima, que apesar das relações que você encontrou entre meus trabalhos e o procedimento dos minimalistas dos anos 60, isso não é algo que eu leve conscientemente em conta, até por um certo alheamento sobre as questões históricas da Arte. O fator predominante da minha preocupação com a beleza dos objetos, por exemplo, vem do meu entendimento de que Arte é antes de qualquer outra coisa, um procedimento estético, não hierarquicamente superior ao conteúdo, mas obrigatoriamente presente.

Victor - De que maneira você acredita que sua formação fora da Academia contribui ou mesmo atrapalha - se atrapalha - o desenvolvimento de seu trabalho? Para ser mais específico: você diz de um certo "alheamento sobre as questões históricas da arte" e que sua leitura da própria obra nasce sempre de um estranhamento que vem depois. Como se sabe, grandes criadores desenvolveram seus trabalhos a partir de uma certa relação de esquecimento com a história. Ao mesmo tempo, olhando para seus trabalhos, é possível ver algumas questões que o colocam dentro de uma história - eu poderia dizer, de maneira redutora: "é arte contemporânea".

Egídio - Sempre entendi a Arte, enquanto criação, como algo totalmente livre, sem regras, pesos ou possibilidade de mensuração, algo que prescinde da Academia, da História e mesmo da obrigação da originalidade. Cria-se atrelado unicamente à própria necessidade interna, e ao próprio repertório. É óbvio, entretanto, que a Arte, enquanto estrutura social, abrange necessariamente a História, a Academia, o Mercado, a Política, etc. Essa Arte cria suas regras, cuida de estabelecer o que lhe é relevante e o que não passa pelo esse crivo. Entra ai a pretensão do artista em estabelecer qual será a sua participação nessa estrutura. Acho que nesse ponto a Academia pode ser um grande facilitador dessa participação, quando age sobre o repertório, enriquecendo aquilo que será o combustível do processo de criação. Talvez eu me ressinta um pouco da falta desse conhecimento formal, que deságua naquele "alheamento" de que falei. Isso não atrapalha, de forma nenhuma, o desenvolvimento do meu trabalho, que utiliza uma sintaxe contemporânea, mas certamente me cria alguma dificuldade, em determinados momentos, na maneira como defendê-lo.

Victor - Para terminar: em "Ângela", instalação pela qual tenho um apreço especial, é possível reconhecer algumas questões de seus outros trabalhos. A força do vento, lançada do ventilador - que, mais uma vez, traz a idéia do mecânico e da repetição - faz oscilar um banquinho pendurado, mantendo uma tensão constante entre a permanência e sua impossibilidade, estabilidade e instabilidade. Através do banquinho desequilibrado (ou desequilibrando) é possível construir uma relação mais imediata com outros trabalhos teus. Mas e o vento - de que maneira interessa a você?

Egídio - Em referência à obra da exposição, "Ângela", concordo com você sobre ela conter elementos de muitos outros trabalhos: o móvel, o movimento mecânico e circular, a noção de equilíbrio, o ventilador, etc. Embora tenha uma gênese um pouco diferente dos demais, é quase um entroncamento entre eles. Já utilizei ventiladores em diversos dos meus trabalhos. Em alguns, o vento é o contido pelo vidro, em outros, como em "Ângela", percorre um caminho quase livre, cruza a obra para vazá-la do lado oposto ao da sua origem e perder-se além dela. Talvez o vento, pela sua condição de invisibilidade, se encontre numa região limítrofe entre o racional e o místico. Entendo-o como ação, ou como o elemento invisível da ação, como força motriz que, embora perfeitamente explicável, abra margem para a dúvida. Na natureza o vento se forma a partir de condições complexas, misteriosas, incontroláveis. No ventilador, é o resultado racional da mecânica, do engenho, mas mesmo assim mantém sua condição de elemento por onde pode fluir o poético.


Egidio Rocci: Ângel, 2004