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Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, New York, 1915.
Baronesa Elsa pode ser considerada “a primeira Dadá Americana[1]” e algumas pesquisas indicam sua possível presença e algumas imprecisões em relação à história da autoria do readymade, atribuída incontestavelmente à Duchamp. A amiga de Duchamp, Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, em uma época em que a presença feminina, mesmo tímida, estava começando a ser integrada nos movimentos artísticos, encontrou no dadaísmo e na cidade de Nova York uma fresta de liberdade. Buscando todo tipo de transgressão, calcada na mais pura origem –dada- livre de contaminações rígidas de tradição, o movimento se ampliava abarcando artistas, poetas e literatos, entre homens e mulheres chegando à Nova York, onde Duchamp se fixava trazendo o ar de Paris. Intensamente performática, Baronesa Elsa não separava arte e vida e tinha o hábito de coletar objetos encontrados e dar títulos que alteravam seu sentido. Hans Belting nota que a história da arte sempre foi uma história da arte europeia e que em determinado momento surgiu a necessidade por parte dos norte-americanos de reescrever a história da arte, bem como inserir a arte das minorias e sobretudo a arte das mulheres. “Uma história desprezada lançava a acusação de que a história oficial da arte teria sido simplesmente inventada e reivindicava para si a revisão dessa história”[2]. A biografia de Baronesa Elsa foi resgatada inicialmente por Irene Gammel e Glyn Thompson em 2002[3] e vem sendo amplamente pesquisada, inclusive levantando a hipótese do conceito de readymade e, em especial, o episódio envolvendo a Fonte, ter sido atribuída à ela.
Fonte, 1917. Fotografia:Alfred Stieglitz
Baronesa Elsa, no entanto, não pretendia ser vista como artista, não tinha a ambição de estudar arte na academia de Belas Artes e tampouco praticava estudos e cópias dos grandes mestres, mas ela era sim dadaísta. Ela foi dadaísta, sem passar por nenhuma tradição histórica e artística e pelo que parece se levava pouco a sério - e não seria este o maior princípio dada? - Talvez por isso Jane Heap chegou a afirmar: “ela é a única de todo o mundo que veste Dadá, ama Dadá e vive Dadá”[4]. Baronesa Elsa costumava criar esculturas com objetos encontrados na rua e conferia títulos à eles. Em 1913 encontrou um anel de ferro maciço de 80 milímetros de diâmetro que transformou na peça Enduring Ornament. Outros exemplos como Cathedral (1918) para um pedaço de madeira, ou God (1917) para um tubo de drenagem conectado à uma caixa de documentos, seguem um procedimento que condiz com as estratégias readymade de Duchamp.
Baronesa Elsa. Enduring Ornament, 1917; Cathedral, 1918 y God, 1917.
A história da aquisição do urinol nunca foi completamente esclarecida, acreditou-se durante muito tempo que Duchamp comprou o mictório na loja J.L. Mott Iron Works. Mas sabe-se que em uma carta em 11 de abril de 1917 à sua irmã Suzanne ele escreveu que “uma amiga com o pseudônimo masculino de Richard Mutt enviou, como escultura, um mictório de porcelana para a exposição dos Independentes. Eu tive que botar meu cargo à disposição e os boatos irão correr à solta em Nova York”[5]. Recentes pesquisas apontam que Duchamp não poderia ter comprado o urinol porque na época a J.L. Mott Iron Works não vendia este modelo em específico[6]. Essa carta nunca havia sido lida até 1982 quando foi publicada pelo Archives of American Art Journal[7]. As origens do urinol – a fonte da Fonte- nunca foram totalmente esclarecidas e Julian Spalding e Glyn Thompson levantam suspeitas da autenticidade de Duchamp. “Se Duchamp não submeteu o urinol, por que ele fingiria mais tarde que foi ele? Após a morte de Elsa em 1927, esquecida e em pobreza abjeta, Duchamp começou a deixar seu nome ser associado ao urinol, e em 1950, quatro anos depois da morte de Alfred Stieglitz, quem fotografou a Fonte original, ele começou a assumir a autoria”[8]. Segundo os autores a razão para tal atitude foi que muito se havia investido na figura de Duchamp, teorias acadêmicas e curatoriais já haviam sido escritas e o mito fundador da arte conceitual já havia sido criado e se tratava de uma importante contribuição americana para o modernismo. Glym sugere que Duchamp não só se apropriou do gesto de Elsa como se apropriou de seu discurso como se percebe em suas entrevistas[9].
A versão original da Fonte, a de 1917, fotografada por Alfred Stieglitz, foi perdida e provavelmente destruída, suspeita-se que acabou indo pro lixo. Mas muitas réplicas foram feitas após esse episódio ganhar notoriedade. Em 1950, para a exposição Challenge and Defy na Sidney Janis Gallery, Duchamp autorizou Janis a comprar um urinol no Mercado de pulgas em Paris e assinou com letras pré-fabricadas. Neste ponto, observa Glym, “a réplica autentica o original perdido, o que prova que a autenticação somente funciona se o autor da réplica e do original for o mesmo”[10]. Outras doze réplicas foram feitas por Ulf Linde com a autorização de Duchamp para a exposição Galerie Burén, em Estocolmo, em 1963. Novamente o urinol foi originalmente assinado por Duchamp usando as letras. E finalmente em 1964 foi feita a tiragem mais conhecida da Fonte, realizada por Arturo Schwarz responsável pela tiragem limitada de muitas réplicas dos readymades mais importantes de Duchamp. As peças foram apresentadas pela primeira vez ao público em 1964 numa mostra na galeria Schwarz em Milão. Foi Duchamp, segundo Schwarz, quem primeiro teve a ideia de fazer as tiragens. Ele, escreve Tomkins, admitia que: “os readymades não eram “arte”. Eram objetos comuns manufaturados, e já que os originais tinham, quase todos, desaparecido, uma cópia podia servir igualmente para transmitir a mensagem”[11]. Da Fonte foram oito réplicas, todas assinadas por Duchamp com a data do original, a data da réplica, o título, o número de edição e o nome do editor ‘Galleria Schwarz, Milan’. Tomkins conta que “a Fonte foi refeita por um ceramista milanês que trabalhou com base na fotografia do original, tirada por Stieglitz e publicada na revista The Blind Man. Duchamp aprovou os desenhos de produção tanto para ela como para outras réplicas, sendo que cada uma tornou-se –suprema ironia- uma peça de escultura imitando um objeto manufaturado.”[12] Neste momento portanto, as réplicas passaram a ser originais, autorizadas e assinadas pelo artista: Marcel Duchamp. A hipótese de que a Fonte tenha sido enviada pela Baronesa à Sociedade dos Artistas Independentes parece ser bastante viável, mas foi Duchamp quem posteriormente sustentou seu discurso. Quem sabe se esta ação fosse realizada nos dias de hoje, ou seja, um século depois, com a inclusão de mulheres no meio artístico e social, poderia ter sido atribuída ao coletivo Elsa & Duchamp.
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[1] HEAP, Jane apud DURÁN, Gloria G. Baronesa dandy, reina dadá. Madrid: Díaz & Pons, 2013, Baronesa Elsa, p.107
[2] BELTING, H. Op. Cit., p.117
[3] GAMMEL, Irene. Baroness Elsa: gender, dada, and everyday modernity. Cambridge: MIT Press, 2002.
[4] HEAP, Jane apud DURÁN, Gloria G. Baronesa dandy, reina dadá. Madrid: Díaz & Pons, 2013, Baronesa Elsa, p.107
[5] TOMKINS, C. Op. Cit., p.207
[6] Cfr. SPALDING, J.; THOMPSON, G. Did Marcel Duchamp steal Elsa’s urinal? The Art Newspaper. Issue 262, Novembro, 2014 http://old.theartnewspaper.com/articles/Did-Marcel-Duchamp-steal-Elsas-urinal/36155. Acesso em 23/09/2015
[7] Cfr. SPALDING, Julian e THOMPSON, Glyn. Did Marcel Duchamp steal Elsa’s urinal? The Art Newspaper. Nº 262. Novembro, 2014. Disponível em: http://old.theartnewspaper.com/articles/Did-Marcel-Duchamp-steal-Elsas-urinal/36155. Acesso em 29/09/2016.
[8] Idem. Tradução livre da autora. No original: “If Duchamp did not submit the urinal, why would he pretend later that he did? After Elsa died in 1927, forgotten and in abject poverty, Duchamp began to let his name be associated with the urinal, and by 1950, four years after the death of Alfred Stieglitz, who photographed the original Fountain, he began to assume its authorship”.
[9]THOMPSON, Glyn em Entrevista na ocasião da exposição ‘A Lady’s Not A Gent’s’ no Summerhall Festival Disponível em https://vimeo.com/135561893. Acesso em 28/09/2016. (10:21)
[10] Idem. Tradução livre da autora. No original: “In that point the replica autenticates the lost original from with it draws it’s autentication because that only works if the author of replica and original are the same” (4:05)
[11] TOMKINS, C. Op. Cit., p.473
[12] Ibídem, p.475