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Sandra Meyer no espetáculo E.V.A., 2003
Sandra Meyer Nunesé doutora em Artes, Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e possui graduação em Educação Artística - Habilitação Artes Plásticas pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina). É professora associada da Universidade do Estado de Santa Catarina desde 1989, atuando no Curso de Licenciatura em Teatro e no Programa de Pós-graduação em Teatro (mestrado e doutorado). Sua vinculação profissional está principalmente nas áreas de dança e teatro e suas pesquisas acadêmicas envolvem, além de outras questões, temas sobre corpo, movimento, cognição, improvisação, ação física e composição. É presidente do Instituto Meyer Filho, criado em 2004 para a organização e divulgação do acervo do artista plástico catarinense Meyer Filho, seu pai.
A entrevista que segue foi realizada em setembro de 2013 em Florianópolis, e é resultado da disciplina de Territorialidades Modernas e Contemporâneas do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de Santa Catarina. Tem como objetivo abordar questões relacionadas à pesquisa em dança, que atravessam os tempos de forma anacrônica, cuja proposta se alia aos estudos da disciplina, que abordou pensadores que refletem sobre os regimes das imagens e sua sobrevivência no tempo. Sandra tem se dedicado à gestão de projetos formativos e de documentação em dança que apresentam como principal preocupação gerar atrito entre o que já é e o que ainda está por ser, relacionando questões históricas da dança com a dança contemporânea. Esta é a principal preocupação ao organizar as duas edições da publicação Coleção Dança Cênica – Pesquisas em Dança e Histórias da Dança, bem como ao produzir o documentário Limiares sobre a vida e obra do bailarino catarinense Anderson João Gonçalves (1964-2010). Merece destaque ainda sua atuação como coreógrafa a frente do Ballet Desterro na cena catarinense entre meados dos anos 1980 e começo de 1990, além de reunir jovens artistas que no futuro seriam grandes nomes da dança catarinense - Anderson João Gonçalves, Zilá Muniz, Amarildo Cassiano - Sandra traz para formar, coreografar e intervir no que ela constrói importantes nomes da dança então produzida no Brasil como Eva Schull (responsável pela introdução do pensamento de Martha Graham e Mary Wigman no sul do país) e Lennie Dale (figura central na popularização do Jazz dance e na criação do emblemático e iconoclasta Dzi Croquettes). Hoje, seja articulando novamente a vinda de importantes nomes do pensar e fazer dança como João Fiadeiro e Fernanda Eugênio, seja orientando trabalhos que se propõe a refletir artistas contemporâneos, a atividade acadêmica e intelectual de Sandra Meyer é facilmente associada à ideia de construção do presente que Virginia Kastrup 1propõe: construir presença, por tanto ser presente, não seria apenas habitar um tempo cronológico que sucede o passado e precede futuro; estar (no) presente é estar carregando a virtualidade de um passado e a virtualidade de um futuro. As relações entre dança e teatro permeiam o corpo, a mente, o sentido de tempo, espaço, duração. Agamben2 pensa o dispositivo relacionado à organização do ser e da práxis, da fatura e do pensamento, uma relação que pode ser encontrada facilmente nas produções de Sandra Meyer, que misturam pesquisa e ação. O gesto de Sandra Meyer é o gesto de arquivo, de guardar, preservar, pesquisar, manter vivo um arquivo e gerar dispositivos.
Entrevistadores3 Viviane Baschirotto; Anderson do Carmo; Mônica Juergens Age; Giorgio Filomeno: Pesquisar é formar arquivos. A primeira pesquisa que você publicou o livro “A dança cênica em Florianópolis” 4 como foi fazer esse resgate histórico?
Sandra Meyer: Embora eu trabalhe atualmente com processos de criação, não me considero uma teórica nesse sentido, me considero uma artista que foi pesquisar e estudar pra entender o que é a dança. No livro há todo um acervo de fotografias. A Jussara Xavier professora da Udesc, a Vera Torres que é professora da Universidade Federal de Santa Catarina e eu temos uma coleção. Sempre guardei tudo, tenho um grande acervo. Acredito que não se pode perder essa dimensão histórica, mas também pensando em trabalhar de forma mais anacrônica, trazendo os antigos, sempre com a possibilidade de atualizar com o que hoje é uma produção contemporânea. A dimensão histórica é importante para entender a produção atual.
V.B., A.C., M.J.A., G. F.: Você possui uma trajetória de formação clássica, e ao mesmo tempo a sua geração é a primeira que recebe um tipo de informação diferente do ballet que vem para Florianópolis. Essa tensão de pensar o antigo com o novo, com visões contemporâneas, também acontece quando você pensa a dança em uma espécie de arquivo-dança-contemporânea, tentando entender dança contemporânea dentro de um lugar, poderia falar sobre isso?
S.M.: Minha formação inicial em dança é em ballet clássico. Depois em 1976 foi a primeira vez que veio um grupo de jazz para a cidade e largamos o ballet. Fomos seduzidas pelo jazz e pela dança moderna. Acompanhei a entrada de outras vertentes de pensamento na cidade. Sempre lidei com essas tensões do início da dança moderna. O Ballet Desterro5 foi essa página, éramos todas bailarinas clássicas, mas trabalhávamos pelo contemporâneo. Tínhamos a intenção de uma pesquisa corporal tentando sair de um repertório fechado do ballet, havia uma soltura, uma possibilidade de abrir outra gramática corporal. Aos poucos estudei dança contemporânea, mas sempre com uma visão histórica. Sempre pensei ser impossível você pensar o mundo sem pensar a partir das suas conexões. Essa preocupação de pensar o que produzíamos na cidade e como pensávamos a inserção de outras possibilidades de pensar a dança está no livro produzido em 19946. Hoje dentro do campo da dança contemporânea, há questões interessantes para pensar como as noções de representação, de presença, de como viver junto, as noções de trabalhar de forma coletiva e diminuir um pouco a pessoalidade do artista e pensar o acontecimento. Pensar uma construção que não está só no artista, mas na relação com o espectador, nessas possibilidades da arte contemporânea.
V.B., A.C., M.J.A., G. F.: Poderia falar a respeito da relação do teatro, a dança cênica e a dança contemporânea, podemos perceber similaridades e distanciamentos?
S.M.: Sim, por exemplo, mesmo a disciplina de dança dentro do curso de teatro, quando você recebe o aluno que vem na terceira ou quarta fase, que estudou Stanislavski7, Brecht8 e continua no teatro, às vezes, é muito difícil para ele fazer a leitura de um espetáculo de dança contemporânea, porque ainda está carregado de noções de representação, ainda que estudemos um teatro mais contemporâneo ou pós-dramático que mexe com as questões do drama, com as relações de sentido, com a representação. Mesmo assim, ainda é difícil para um ator olhar para um trabalho do Xavier LeRoy9 ou mesmo do Cena 1110, há um estranhamento, porque ainda há uma busca de sentido, de todo aquele elo de começo, meio e fim. Por mais que os alunos estudem, quando se deparam com uma obra de dança contemporânea onde a discussão é outra, há certa dificuldade. É um trabalho de texto de dramaturgia da dança, de outros textos que vão possibilitando uma abertura, uma leitura do que é esse fenômeno daquele artista que fica parado. Ainda há um estranhamento a respeito do sentido, o que esse movimento quer dizer.
V.B., A.C., M.J.A., G. F.: O senso comum vê a dança engessada no ballet, com um único sentido. Há um deslocamento da virtuose, na dança clássica há a preocupação física, de explosão muscular e de conseguir realizar um passo com precisão, é um dado de reprodução. Na dança contemporânea é uma ativação de novos movimentos possíveis e eles são sempre transitórios, poderia comentar a respeito?
S.M.: A dança contemporânea não é uma técnica, é um projeto, uma visão de mundo. Não é exatamente apenas a questão técnica, mas como ela é colocada em cena, como isso é problematizado. O Brasil hoje produz dança contemporânea de qualidade e bastante crítica, há pesquisadores como Micheline Torres11, que estão lendo Agamben12 e se insere em uma estrutura pós-colonial pensando o que é produzido atualmente no país. Há estereótipos no sentido de que uma dança brasileira é aquela relacionada ao samba. Temos referências históricas: ballet, dança moderna, e também as questões culturais. Por todo país há trabalhos interessantes que estão pensando a cultura popular, como matrizes de danças podem se transformar em estruturas de repertórios para criar possibilidades de se mover. Nos estados do sul do país a relação com o popular é maior com as danças étnicas, como as italianas e alemãs. Essas manifestações são matrizes possíveis de pensar uma corporeidade brasileira, mas não mais a partir dessa chave, mas pensando como isso pode ser problematizado de outra forma.
V.B., A.C., M.J.A., G. F.: Em sua tese de doutorado que foi publicada13, você fala também da relação do corpo com a mente, poderia comentar sobre ela?
S.M.: Como eu estava estudando teatro na época, Grotowski14, Stanislavski, queria entender essas relações. Fazia sentido, pois na fala do Stanislavski todos os grandes diretores tinham a questão de não pensar e agir e onde o corpo é uma isca para alma, para o inconsciente-consciente. Esse grande campo que é as ciências cognitivas, que combina psicanálise, psiquiatria, matemática, robótica, é um grande campo de pesquisadores em estudar complexidade, como dar conta de certos fenômenos. Comecei a pensar nessas relações e na ideia de que o corpo pensa. Há várias teorias centrais da dança, várias práticas de não pense, aja, deixe que o corpo faça, há várias pequenas frases que são muito comuns em sala de aula de trabalho corporal e há pessoas que falam, mas será que pensam mesmo? Como é essa relação corpo e mente? Então comecei a estudar, questões de como se o pensamento discursivo fosse impeditivo de um ato criativo, orgânico, essa era a grande questão, então não pense, faça! Aja! Seja instantâneo, instintivo. Todavia atualmente estou repensando isso, porque fomos muito para o corpo, como se a mente fosse uma grande vilã. Estamos em outro momento de que precisamos pensar, com contato com práticas de composição em tempo real. A espontaneidade não é tão espontânea assim, ela vem carregada de hábitos, então pense, olhe, repare, e depois aja. É exatamente o contrário do instintivo. Estamos repensando essa ideia da espontaneidade como esse grande lugar da presença e da qualidade artística. A questão da presença é muito forte para o teatro e para a dança, entender o que faz o espectador olhar para um ator e não para o outro. Essa questão foi entendida como algo divino e mais tarde como algo corpóreo. Agora entendemos isso como fenômeno corpo-mental, mental-corporal. Essa questão da nomenclatura que está na tese chamado corpo-mente, estou repensando. Há alguns pensadores tentando encontrar uma nomenclatura para falar desse corpo, agenciado na contemporaneidade, na arte e na vida. Agrupei os dois, corpomente, mas, na verdade, não tem como dissociar isso.
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1 KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; TEDESCO, Silvia. Políticas da cognição. Editora Sulina: Porto Alegre, 2008.
2 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
3 Entrevista realizada em 19/09/2013 no CEART, UDESC.
4 NUNES, Sandra Meyer. A Dança Cênica em Florianópolis. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1994.
5 Grupo iniciado em 1984 e permanece em atividade até 1992.
6 NUNES, Sandra Meyer. A Dança Cênica em Florianópolis. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1994.
7 Constantin Stanislavki (1863-1938), ator, diretor, escritor russo.
8 Eugen Berthold Friedrich Brecht (1898-1956), dramaturgo e poeta alemão.
9 Dançarino e coreógrafo francês nascido em 1968.
10 Grupo Cena 11 Cia. De Dança, grupo iniciado em 1990.
11 Bailarina, coreógrafa e performer brasileira nascida em 1974.
12 Ibid.
13 NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo, Florianópolis: Annablume, Ed. Da Udesc, 2009.
14 Jerzy Grotowski (1933-1999), diretor teatral polonês.