Coleção de Fabíolas | LUCILA VILELA

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Uma coleção de cópias reunindo mais de quatrocentas réplicas de uma mesma imagem compõe uma única obra: Fabíola, do artista belga radicado no México, Francis Alÿs. As imagens são cópias de uma tela perdida, pintada originalmente por Jean-Jacques Henner (1829-1905) e exposta no Salão de Paris em 1885. Henner elaborou sua pintura a partir da história narrada pelo cardeal Nicholas Wiseman no livro Fabíola ou A Igreja das Catacumbas, escrito em 1854. O livro conta a vida de uma mulher romana que foi renegada pela igreja por se casar duas vezes e após a morte do segundo marido, decidiu renunciar à vida terrena e se dedicar à filantropia. Essa era Fabíola que ficou conhecida como santa dos pobres, das viúvas e da enfermagem. Alÿs que, em 1990, decidiu começar uma coleção de cópias feitas à mão de obra-primas ocidentais, surpreendeu-se com a quantidade de reproduções de Santa Fabíola em mercados populares, antiquários e coleções.

A devoção da santa, que nunca obteve o reconhecimento da igreja, deu-se em um plano paralelo, marginal, difundindo-se principalmente devido à profusão de sua imagem, criada a partir do imaginário de Jean-Jacques Henner: uma mulher de perfil com manto vermelho. No entanto, o quadro original desapareceu no século XIX e Santa Fabíola deve sua popularidade às inúmeras cópias que até hoje são realizadas a partir da figura imaginada por Henner. Francis Alÿs, assim, consolidou sua  coleção a partir de cópias, realizadas por artesãos e pintores que circulam em um mercado paralelo. A imagem que subitamente se tornou um ícone, foi encontrada em diversos meios tais como pintura à óleo, bordado, esmalte, entre outros. Segundo Douglas Fogle, “Alÿs regularmente emprega pintores de cartazes mexicanos (rotulistas) para pintar  versões ampliadas e elaboradas de suas pinturas de pequeno porte; estes são livres para produzir cópias ilimitadas. Sua intenção é desafiar a idéia da obra original, tornando o processo estrutural mais anônimo e deflacionando o valor  comercial da arte. Ao interromper esses tipos de padrões, Alÿs joga com as tensões sociais e culturais. Na verdade, ele afirma que suas pinturas e  imagens "são apenas uma tentativa de ilustrar as situações  enfrentadas, provocadas, ou realizadas por ele num nível mais público , mais urbano, e mais efêmero.”[1]

Os quatrocentos retratos de Santa Fabíola, de diversos tamanhos e materiais são expostos nas paredes de museus históricos questionando a ideia de colecionismo e provocando debates associados à autoria, iconografia, cópia e originalidade. Lynne Cooke, curadora da exposição, conta em um texto sobre a coleção, um curioso episódio: "Alÿs enviou 60 peças de sua coleção de Fabíolas para uma mostra em Saarema, na Estônia, em 1997, e, quando elas retornaram, descobriu que 30 delas tinham sido substituídas por cópias um tanto rudimentares para simular as 'originais' que, misteriosamente, desapareceram na viagem. Os estonianos pretenderam enganar o próprio colecionador com suas "falsificações"[2].

De fato, o jogo entre cópia e original, neste caso, chega a gerar confusões no mercado da arte: ao transformar sua coleção em obra, Francis Alÿs inevitavelmente atribui um novo valor aos quadros. É justamente essa contradição que potencializa a obra. O artista constrói um diálogo entre dois circuitos, deslocando os quadros de um mercado para outro. Alÿs ao reunir as Fabíolas enfatiza a força do conjunto, colocando em evidência a proliferação de cópias que indicam um fenômeno de devoção e aceitação das réplicas a partir da construção de um ícone. As diferenças e semelhanças entre os quadros, apesar de traços distintos, identificam sempre a mesma imagem. Cuauhtémoc Medina observa que os mercados de pulgas são buracos negros dos significados, lugares onde os objetos perdem seus significados hereditários que lhes dão um sentido de propriedade e adquirem novos significados cada vez que trocam de mãos[3].

A questão da autoria também entra em cena. Francis Alÿs se apropria de quadros de terceiros para construir sua obra. Na instalação, os autores se fundem, alguns quadros exibem assinaturas, outros permanecem anônimos. A apropriação é clara e assumida, e o gesto do artista manifesta uma herança duchampiana, deslocando as obras encontradas para o interior do museu. A relação de cada quadro que compõe a instalação de Alÿs aparece discriminado no catálogo lançado na ocasião da exposição em Los Angeles. Cada obra exibe uma ficha técnica identificando o autor, a procedência e o estado de conservação. No entanto, todos esses autores reunidos formam a obra de um único autor: Francis Alÿs. O gesto de fusão autoral se intensifica na quantidade de réplicas. São múltiplas identidades de múltiplas Fabíolas que incitam discussões relevantes do procedimento artístico contemporâneo.