Máquina Orquestra. 1/7/17 | LUCILA VILELA

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Máquina orquestra, essa grande trapizonga*, ocupa todo o chão da sala. Os fios expostos e desalinhados formam desenhos, rastros de um pensamento visual. Desenhos que conectam as esculturas – máquinas inventadas que emitem ruídos. Esse conjunto de esculturas eletrônico-mecânicas produz um refinado diálogo entre arte sonora e visual. Construídas artesanalmente, as máquinas apresentam sistemas complexos, quase indecifráveis, ao mesmo tempo em que revelam objetos reconhecíveis como uma cartela de remédio, fragmentos de latas de alumínio, fôrmas de bolo, e outros materiais que emitem sons quando são acionados. Um sistema de câmeras de vídeo é também incorporado e reflete em seus monitores detalhes captados da própria instalação. Através de controladoras e computadores, as máquinas respondem aos estímulos dos sinais que se organizam dentro de uma trama programada. Três máquinas regentes leem as informações perfuradas no papel milimetrado; como pianolas, determinam o tempo e impulsionam toda essa engenhoca que se organiza em vias de transmissão analógica e digital.

Quando os artistas estão presentes, as máquinas respondem aos estímulos das oito mãos. O tempo da performance é determinado pelas bobinas, que se desenrolam lentamente durante o processo. Uma textura musical se desenvolve no improviso, na interação entre o programado e o imprevisto. Os artistas tocam seus instrumentos atentos ao conjunto e às reverberações dos sons que diferem em cada apresentação. Na medida em que eles deixam a sala, as máquinas ganham autonomia e se orquestram num ritmo programado, com espaços de tempo suavizados pelo silêncio. A performance se transforma em instalação e permanece atuante no espaço. No encontro das batidas, cria-se uma unidade. Partituras regem uma música mecânica. E no ranger das cordas (quase) invisíveis ou no giro acelerado do trio de latas, os ritmos tornam-se visuais. No meio disso tudo, escapa um balé mecânico.

O trabalho artesanal na Máquina Orquestra é fruto de um processo minucioso, em que arte, técnica e ciência se encontram na fusão entre o analógico e o digital. A virada do século XX para o XXI foi marcada pela passagem da tecnologia analógica para a digital, e a geração dos artistas Roberto Freitas, O Grivo (Nelson Soares e Marcos Moreira) e Marcelo Comparini foi afetada por essa transição. As soluções encontradas para o funcionamento das máquinas, portanto, não poderiam prescindir de um conhecimento que reúne a compreensão dessas duas vertentes. O desenvolvimento cognitivo das máquinas inventadas acontece no cruzamento de um domínio técnico com percepções artísticas, o que interfere diretamente na noção de espaço e tempo.

Na tradição histórica dos criadores de instrumentos e ativadores de ruídos, as referências são inúmeras: desde os futuristas até o inevitável John Cage. Mas podemos remontar ainda mais longe e evocar as inauditas máquinas musicais de Leonardo Da Vinci. Entre os vários projetos de Leonardo, encontra-se, em seus desenhos, um estudo para a construção de uma Pianola automática que o músico poderia tocar andando, como se tivesse um teclado preso pela cintura; seu funcionamento se dava por meio de uma crina de cavalo que, em contínuo movimento dentro da pianola, entrava em contato com as cordas movidas pelas teclas, emitindo por atrito um som semelhante ao de um violino. Outros projetos: uma Lira em forma de crânio, destinada a uma função mais cênica que musical, que utilizava partes de animais como caixa de ressonância; ou também um Tambor mecânico, pensado para ser usado em celebrações ou batalhas com a finalidade de aterrorizar o inimigo, podendo ser conduzido por uma pessoa, um animal ou acionado por uma manivela. Essas máquinas sobreviveram através dos desenhos, que atestam a intenção de máquinas-instrumentos. Mas a experiência com ruídos produzidos por máquinas ou incorporados do cotidiano só entrou para o âmbito artístico muito mais tarde, encontrando seu lugar na arte do século XX. Atualmente, a investigação do ruído no campo da arte abarca sons e imagens, e capta o convívio cada vez mais intenso com dispositivos tecnológicos.

A criação de instrumentos a partir de um pensamento escultórico faz com que a Máquina orquestra transite entre os espaços da música e das artes visuais, com uma percepção contemporânea. Ao contrário das máquinas de Leonardo, tudo é construído sem um projeto de execução; é no próprio fazer que a coisa acontece. Por isso a importância da pesquisa, que só pôde ser realizada a partir do encontro (viabilizado por editais de apoio) desses artistas. Um encontro que possibilitou uma pausa de mil compassos, para citar o mestre Paulinho da Viola. Uma pausa necessária para a realização do trabalho. Performance instalativa, escultura sonora, música visual, nenhuma definição parece dar conta desse projeto. A singularidade dessas engenhocas brota como uma fonte inesgotável de ideias e conhecimentos, e revela o tamanho da encrenca. Máquina Orquestra, essa indefinível e indecifrável trapizonga, parece transitar entre a experiência temporal da escultura, o traquejo coreográfico das máquinas e a repercussão espacial dos sons.

 


* Diz o Houaiss eletrônico: “trapizonga:1conjunto de coisas confusas, desordenadas; 2conjunto de trastes de pequeno tamanho; Etimologia: alt. do esp.trapisonda 'confusão de vozes, bulha, confusão, enredo', do nome do império de Trapisonda na Ásia Menor (< gr. Trapezoûs,oûntos)” (N.R.)