Encrenca sonora. Uma conversa sobre a Máquina Orquestra | KAMILLA NUNES e LUCILA VILELA

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Concebida pelos artistas O Grivo (Nelson Soares e Marcos Moreira), Marcelo Comparini e Roberto Freitas, a Máquina Orquestra surgiu de uma colaboração na qual as pesquisas individuais dos artistas deram lugar a uma investigação que se materializou em uma instalação performática. Nesta entrevista, que ocorreu após uma das apresentações no Museu de Arte de Santa Catarina, em maio de 2017, os artistas contam um pouco dos aspectos técnicos e conceituais desse processo, bem como das especificidades da residência realizada através do Programa Rede Funarte Artes Visuais 10ª Edição e do Prêmio Elisabete Anderle 2014.

Kamilla Nunes e Lucila Vilela - A Máquina Orquestra surgiu de um encontro entre vocês, imaginamos que por questões de afinidade de linguagens referentes às suas produções individuais. Gostaríamos de saber em que momento vocês decidiram desenvolver um trabalho juntos. Por que uma máquina orquestra?

Roberto Freitas - Acho que resolvemos trabalhar juntos quando conhecemos o trabalho uns dos outros. Em particular, eu tinha vontade de trabalhar com os mineiros do Grivo e vontade de trabalhar com o Marcelo, essa vontade virou um projeto em busca de financiamento para uma residência onde pudéssemos conviver e descobrir pontos de intersecção entre nossos trabalhos. Meu trabalho, assim como os trabalhos dos outros participantes, flerta com multimeios. No meu caso, a música, a pintura, a animação e a eletrônica são essenciais. Esse encontro foi a oportunidade de pensar o meu trabalho de um ponto de vista mais colaborativo, mais generoso, e isso expandiu muito minha percepção sobre as possibilidades de produção em arte. Posso dizer que ganhei muito com o processo e fiquei muito feliz com o resultado, que não é o meu trabalho, não é o trabalho do Marcelo nem o do Grivo, mas algo entre, que não poderia existir fora desse espaço.

KN e LV - Pelo que pudemos acompanhar do processo de criação da Máquina Orquestra, todos os elementos que a constituem são desenvolvidos por vocês: o design, a criação de circuitos, a elaboração das partituras, a marcenaria e os próprios instrumentos/engenhocas manipulados durante a performance. É fundamental para o projeto que vocês estejam envolvidos diretamente em todas essas etapas de criação/construção?

Marcos Moreira (O Grivo) - Fazer com as próprias mãos é imprimir a impressão digital nos objetos. Cria-se uma certa unidade, tem mais identidade. Há nos instrumentos um aspecto esvoaçante, pouco espesso, despreocupado, aprazível, divertido. Nada mal, uma solução artesanal.

Marcelo Comparini - Essa situação de envolvimento é a que, para nós, mais realiza o potencial maquínico da máquina, digo também da megamáquina com que estamos em relação. São processos operatórios, empíricos, hermenêuticos que se efetuariam com outra expressão se fossem delegados a terceiros. Esses elementos citados (criação de circuitos, marcenaria, elaboração de partituras, design, etc.) são limiares onde nos colocamos a trabalhar na duração em que o projeto (no sentido do compromisso institucional que agencia e viabiliza nosso encontro) determina. Em outra escala de tempo, por exemplo,  poderíamos acompanhar o crescimento da árvore da qual usaríamos a madeira, talvez guiássemos os galhos para que crescessem de tal forma que nos interessasse mais, mas adquirimos a madeira cortada em ângulos retos porque assim ela é oferecida no mercado e isso também se expressa. Penso que dessa mesma maneira estamos em relação com o que seja sonoro (não digo musical) ou com o que seja trabalho (não digo arte) no campo da cultura, com os legados com os quais dialogamos no âmbito do Máquina Orquestra. A criação, de fato, é pequena, é como nos compomos nessa natureza maquinal, é um arranjo das virtualidades que o filtro do nosso encontro atualiza.

RF - Construímos tudo sem um projeto de execução, fazer é o projeto, não poderia existir de outra forma. Não são máquinas precisas, são a materialização de pensamentos provenientes de debates entre nós. Fazer os objetos é nossa maneira de conversar sobre a própria natureza do que estamos fazendo. Depois, tem os instrumentos criados para as performances, eles foram feitos de forma individual para a conversa ao vivo, para a improvisação que realizamos na frente do público. Mas mesmo eles são um diálogo com o que já criamos antes em parceria. Assim, na minha visão, é como se a confecção desses instrumentos fosse um momento de reflexão individual para voltarmos a conversas já estabelecidas.

KN e LV - A instalação da Máquina Orquestra no Museu de Arte de Santa Catarina, em maio de 2017, foi inaugurada com seis apresentações, cada qual envolvendo uma ação performática. Mas, pela primeira vez, a instalação permaneceu no museu por um período de trinta dias, ligada através de um controlador que determina seu tempo de funcionamento. Vocês podem comentar sobre essa transição?

MM - A instalação funciona sozinha, sem os músicos. Todas as máquinas obedecem às determinações dos regentes. Os regentes mandam ordens para a caixa de controle. A caixa de controle controla a velocidade dos motores e para qual dos grupos de instrumentos vai o sinal: para as hélices ou os monocórdios. A Radinha também recebe sinal das partituras, e as câmeras de vídeo se alternam também em função do sinal que vem das partituras. Nós, os músicos, fazemos a intervenção e mudamos a paisagem da orquestra, transformando a configuração da ambientação sonora. Além disso, nós também recebemos sinal dos regentes e suas partituras milimetradas. E, por fim, tocamos instrumentos, improvisando a partir das sonoridades da orquestra, alterando, recompondo, remodelando assim toda textura sonora da instalação.

MC - É uma passagem natural, construímos a instalação como um produto-que-produz-e-se-produz, essa coisa da escultura antiga que se mexe e faz algo, que às vezes é nada. Nessa trajetória, desde a primeira apresentação no auditório da reitoria da UFMG até a exposição no MASC, estabelecemos conversas na instalação em que ela se transforma, fica mais consistente e isso a autonomiza mais. Os elementos biológicos que chamamos vulgarmente de corpos humanos se tornam um pouco mais dispensáveis na composição de apresentação da instalação.

KN e LV - Quais instrumentos foram criados e acrescentados à Máquina Orquestra durante a residência realizada em Florianópolis através do Edital Elisabete Anderle?

MC – Criamos uma nova versão de um instrumento que chamamos de “Radinha”. Ela já funcionou de diferentes maneiras, mas antes de contar sua "evolução", vou retomar um pouco o funcionamento geral da instalação para contextualizar como ela se moveu nesse "sistema taxonômico". Os furos nos loops de papel perfurado das pianolas fecham circuitos elétricos emitindo pulsos cuja duração depende do tamanho do furo e da velocidade do motor que transporta o papel. Esses pulsos gerados pelos furos no papel por qualquer das três pianolas passam por um splitter que multiplica as conexões sem misturar os sinais e tem dois destinos diferentes, uma caixa que converte esses sinais elétricos em sinais MIDI (Musical Interface Digital Instruments) e outra caixa que amplifica esses pulsos para que tenham potência para mover os motores elétricos. As relações entre relés, tensões da fonte de energia, campos eletromagnéticos gerados pelas próprias bobinas da radinha, refluxos elétricos e outros fatores nos levaram a provocar dois princípios de incêndio em dias intermináveis de trabalho e frustração depois do quais decidimos mudar de tática. Essa radinha, portanto, recebe os sinais elétricos das pianolas em um circuito eletrônico semelhante ao arduíno, que traduz essas entradas em valores de saída PWM (Pulse Width Modulation) de igual duração e frequências que atribuímos a cada bobina ou conjunto de bobinas em sessões de teste e escuta das respostas.

KN e LV - A cada vez que um instrumento "pifa", uma nova solução é criada por vocês para que ele permaneça em funcionamento, dificultando assim uma manutenção terceirizada. Como vocês lidam com essa situação?

MC - É uma característica vital da máquina, "pifar". Sabemos que elas só funcionam desfuncionando, escultura que se mexe tem vocação a se quebrar, se autodestruir. Um dos motores estéticos mais ricos do trabalho se faz aí. Terceirizar a manutenção não está no horizonte das minhas preocupações. Nessas situações, lembro que meu avô me dizia algo como "fatto, disfatto, tutto lavorato" apesar de nem ele nem eu falarmos italiano.

KN e LV - Quais as principais referências artísticas (e não artísticas) para a concepção da Máquina Orquestra?

MM - Colon Nancarrow, músico americano e compositor para pianola que viveu no México.

RF - A fantástica máquina músico-erótica de Durand Durand do filme Barbarella, de Roger Vadim, rodado nos anos 60; a máquina do museu que aparece no filme (1976) de Emídio Greco adaptado do livro A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, publicado pela primeira vez em 1940; Clinamen, a máquina de pintar inventada por Alfred Jarry no final do século XIX; a cadeira elétrica desenvolvida por Harold P. Brown que matou pela primeira vez nos anos 1890; Frankenstein; todas as máquinas de Júlio Verne e de Raymond Roussel; o trompe-l’oeil, ou, quem sabe, a anamorfose.