Duchamp soube viver: Bispo morrer - Parte 2 | FERNANDO BOPPRÉ

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Bispo do Rosário: Partida de Xadrez com Rosângela. Duchamp jogando xadrez.

Das coincidências

O xadrez possibilita partirmos do acaso ao invés da coincidência formal. Um dado (ou melhor, uma jogada): Bispo e Duchamp eram enxadristas. Duchamp foi campeão de xadrez da Alta Normandia em 1924 e participou por diversas vezes do campeonato francês dedicado ao esporte. Chegou a fazer parte da equipe da França na Olimpíada de Xadrez de La Hayer (1928), de Hamburgo (1930), de Praga (1931) e de Folkestone (1933). Escreveu um livro sobre uma jogada de xadrez.

Bispo, humilde, não teve uma carreira no mundo do xadrez, muito menos prêmios (mesmo se os quisesse, as circunstâncias o impediriam). Contudo, algumas de suas Obras versam diretamente sobre este jogo e, por diversas vezes, era possível encontrá-lo dedicando-se ao tabuleiro, como no documentário “Bispo”, realizado pela série “Vídeo-Cartas”, dirigido por Fernando Gabeira na década de 1980. Em uma das cenas, jornalista e interno disputam uma partida.

O xadrez, em verdade, é a metáfora ideal para a hipótese que perpassa minha fala. Aquele que o joga faz uso de um discurso revestido de hierarquias. Há reis, rainhas, bispos, torres, cavalos e peões dispostos em um tabuleiro cujas peças possuem movimentos delimitados. Só é possível elaborar e executar uma jogada a partir destas categorias. Imaginemos uma hipotética partida, uma mistura arranjada de xadrez com boxe (mais uma coincidência, ambos gostavam dos ringues). De um lado, Bispo, jogando de preto. Seu estilo de jogo é a eterna busca pelo “Rei eterno”, constantemente preocupado com o instante no qual o rei profano seria deposto e o Julgamento Final instalado. Do outro lado, Marcel Duchamp que dispunha de todas as peças do tabuleiro mas só queria dizer: “O Rei está nu!”, numa blague evidentemente direcionada ao circuito artístico. Bispo, o obcecado pelo xeque-mate. Duchamp aquele que se interessava, sobretudo, pelas jogadas e pelo processo antecipatório a um xeque-mate.

Bispo souber morrer ao passo que Duchamp viver. Não por acaso, o sepultamento de ambos é assinalado por singulares sentenças finais. Este, ao falecer em 2 de outubro de 1968, fez-se enterrar no cemitério de Rouen e gravar em seu túmulo: “D’ailleurs, c'est toujours les autres qui meurent” (“Afinal, são sempre os outros quem morrem”). Esse foi Duchamp, sempre convicto em seu espírito zombeteiro, dispensando pouca atenção a sua relação com a arte e com sua condição de artista ao passo que Bispo faleceu sozinho em 1989 e foi desautorizado a fazer aquilo que mais almejava em vida: ser enterrado vestindo seu “Manto da Anunciação”. Obra fulcral hoje pertencente ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, trata-se de peça tecida com suas próprias mãos para ser o traje final, a síntese da grande narrativa que ordenara em sua passagem pelo planeta. Era com esse Manto que ele se apresentaria aos céus.

Das dissonâncias

As fontes do gozo de cada um deles são absolutamente distintas. Duchamp, o irônico que lançou mão do humor em seus trabalhos para desconstruir o que se compreendia por artes plásticas. O ready-made é, segundo Octavio Paz, “um exercício ascético, uma via purgativa. A diferença das práticas dos místicos, seu fim não é a união com a divindade nem a contemplação de uma suma verdade: é o encontro com ninguém e sua finalidade é a não-contemplação” (Paz, 2010, p. 30). Nada mais distante do que propunha Bispo. Seu propósito de vida era apresentar seu trabalho no momento em que ele e suas Obras fossem reunidos junto ao Deus. Ele seria reconhecido como o autor de uma grande narrativa sobre as pessoas e as coisas que existiam sobre a Terra.

Duchamp foi, em boa medida, um erudito. Como poucos, conhecia as regras do jogo do circuito artístico vigente. Seu fascínio pela pintura renascentista de caráter religioso é um exemplo de sua proximidade com a história da arte. O gosto pelo xadrez é o vestígio de uma mente afeita aos jogos e aos padrões do acaso que sempre surgem em uma partida qualquer. Foi preciso primeiro Duchamp ser o pintor, o autor declarado, que assinava suas pinturas, para depois deixar de ser pintor e depois, mais radicalmente, deixar de ser artista. É bem possível que o longo período em que trabalhou em bibliotecas (negando-se a ser um artista profissional) tenha sido ocupado com inúmeras leituras sobre arte.

Bispo, o sério. O “egípcio”, como escreveu Sérgio Medeiros (2007). Certa vez, ao ser convidado para uma festa de São João, esbravejou dizendo se tratar de coisa de pagão. Era preciso ver uma cruz que dizia ter nas costas, ao contrário, sequer se dirigia à pessoa que o procurava. Acreditava tanto em um céu católico, com anjos e o Senhor entronado, que reordenou o mundo a seu modo em mantos e estandartes (objetos que remetem diretamente ao caráter sagrado e militar). Pouco dialogava com artistas (exceto quando eles vinham perturbá-lo em seu afazer). Seu espelho era outro: o céu, a Bíblia, o rito cristão.

 

Marcel-Duchamp-The-Large-GlassDuchamp: Grande Vidro (o gran retarde)

Inatividade, retardamento diante da aceleração do moderno. “Uma obra sem obras: não há quadros a não ser o Grande Vidro (o grande retarde), os ready-made, alguns gestos e um grande silêncio” (Paz, 2008, p. 9). Duchamp, o artista que deixou para depois o ofício de ser artista em contraposição ao excesso, ao acúmulo, à produção intensa e inarredável de Bispo. Segundo Paulo Herkenhoff, “São 802 objetos conhecidos. É um grandioso metassistema, formado por sistemas de objetos precisamente demarcados, que organiza ‘o material existente na Terra’ [...]. Esses objetos trazem a marca da precariedade” (Herkenhof, in: Lázaro, 2008, p. 149). Se com Duchamp há um grande silêncio endereçado ao circuito artístico, em Bispo há um dizer estrondoso, quantitativo e monotemático dedicado ao Além. Essa é uma das dissonâncias fundamentais entre ambos.

O francês promoveu a descida aos subterrâneos do sistema das artes, expôs suas entranhas, desconstruiu a noção do que era ser artista, redesenhou o conceito de autor. A tela “Nu descendo uma escada nº 2” não deixa de ser uma lenta queda em direção ao questionamento sobre o que é o fazer da arte e quem a produz. Bispo, em seus trabalhos imprimiu um ritmo ascendente sempre em direção à Santíssima Trindade. Partiu do pouco, do quase nada, dos dejetos e dos refugos da civilização industrial-periférica brasileira da metade do século XX. O que lhe chegava às mãos era trabalhado para ser reapresentado ao Senhor. Um movimento extremamente desconcertante para a Academia e para o circuito contemporâneo das artes visuais que produz, em última instância, para o mercado institucionalizado da arte: editais, salões, museus, bienais, galerias, projetos culturais, colecionadores, entre outros.

É preciso lembrar que Bispo nunca produziu para mostrar em espaços normativos da arte e que o ato de não enterrá-lo com o “Manto da Anunciação” foi, talvez, o caso mais injusto arranjado pelo sistema das artes (aliado ao da psiquiatria). Paulo Herkenhoff percebeu outra contradição: Bispo teria a missão de organizar o mundo, mas acabou desorganizando a arte. A situação de Bispo na arte brasileira é a de um “fantasma da modernidade” que trabalhava a partir de resíduos, constituindo assim “[...] antes de tudo um problema historiográfico e crítico” (Herkenhoff, in: Lázaro, p. 137).

 

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Bispo do Rosário com o Manto da Anunciação

Trata-se de um “problema” tão-somente para a hermenêutica que a posteriori se debruçou sobre seu legado. Antes de nada, Bispo era um religioso, um homem que tinha relação com os ritos até mesmo em seu nome próprio (“Bispo” e “Rosário”). Talvez a área de saber que mais poderia contribuir para desvendar o pensamento de Bispo do Rosário não seria a história da arte, mas sim a teologia (de uma parte) e a psicanálise (de outra parte).

A memória, para Duchamp, era coisa pouca. Fonte de infindáveis jogos de humor. Um exemplo: o célebre bigode aplicado sobre a reprodução de “La Joconde”, tela pintada entre 1503 e 1506 por Leonardo da Vinci e hoje pertencente ao Museu do Louvre. O título desta obra de Duchamp datada de 1919 é o trocadilho “L.H.O.O.Q”, algo como “Ela tem o traseiro quente”. Em Bispo a memória era sagrada e deveria ser trabalhada e apresentada ao (seu) Senhor Jesus Cristo da melhor maneira possível. Um exercício radical do limite, uma dedicação visceral. Nesta ascese em torno da memória das coisas e dos homens, Bispo utilizou-se daquilo que lhe pertencia desde o princípio: o seu próprio corpo, a sua (in-)sanidade, dispensando a sociabilidade tal qual a conhecemos para se lançar de maneira obsessiva ao trabalho.

Duchamp, ao contrário, soube lidar com a sociabilidade de maneira estratégica, tornando-se um alegre vagabundo durante anos, apoiando-se num casamento de fachada. Conhecia tanto as regras do jogo, que pode subvertê-las. Bispo, o conservador. Acreditava tanto em um paraíso católico que se trancou em um quarto por sete anos para trabalhar e, assim, atingi-lo.

Sem Duchamp talvez não conhecêssemos a obra de Bispo. Foi aquele quem escancarou as portas por onde entrou Bispo. É preciso deixar claro, no entanto, que Duchamp as escancarou tão-somente no limite do campo das artes plásticas/visuais. Isso refletiu nas artes e não na vida (por mais que a arte contemporânea queira o contrário, por mais que o próprio Duchamp apostasse na relação da arte com a vida).

Bispo tão conservador em sua fé que acabou por subverter – mesmo dentro de uma normatividade estrita – o campo artístico. Seu verbo era transcender (palavra expulsa do vocabulário artístico desde los románticos). Pela ação estética, Bispo ganhou o céu. Acharam-no, como um anjo caído, no circuito das artes visuais. E não entenderam que era preciso devolvê-los aos braços do Senhor (que ele tanto acreditava). Talvez por isso, este ensaio seja desnecessário. Quando mais se fala, mais se dobra Bispo ao circuito acadêmico e artístico.

Borges-Bartleby-Bispo

Interessa-me, em arte, um certo estado febril estreitamente ligado à memória que retoma as experiências de uma vida – nem que seja à morte ou a insanidade. Jorge Luis Borges – o escritor que talvez tenha experimentado por meio da literatura todos os sentimentos correntes em sua época e os de outrora – num poema dedicado ao seu avô, Isidoro Acevedo, descreve com perfeição o que chamei de “certo estado febril ligado à memória”.

 

“É verdade que ignoro tudo sobre ele
– salvo os nomes de lugar e as datas:
fraudes da palavra –
mas com temerosa piedade resgatei seu último dia,
não o que outros viram, o seu,
e quero me distrair de meu destino para escrevê-lo.

Afeito à conversa portenha do truco,
alsinista e nascido do lado bom do Arroyo del Medio,
fiscal de frutos do país no antigo mercado do Once,
no terceiro distrito,
lutou quando Buenos Aires o quis
em Cepeda, em Pávon e na praia dos Corrales.

Mas minha voz não deve assumir suas batalhas,
porque ele as travou num sonho essencial.
Porque como outros homens escrevem versos,
meu avô fez um sonho.

Quando uma congestão pulmonar o estava arruinando
e a febre inventiva falseou-lhe a face do dia,
reuniu os documentos ardentes da memória
para forjar seu sonho.

Isso aconteceu numa casa da rua Serrano,
No verão abrasado de mil novecentos e cinco.
Sonhou com dois exércitos
que entravam na sombra de um combate;
enumerou os comandos, as bandeiras, as unidades.

“Agora os chefes estão parlamentando”, disse em voz
que se ouviu,
e quis se levantar para vê-los.

Recrutou gente do pampa:
viu terreno quebrado para que a infantaria pudesse aferrar-se
e planície arrojada para que o arranque da cavalaria fosse
invencível

Fez uma última leva,
reuniu os milhares de rostos que o homem sabe, sem saber,
com os anos:
rostos de barba que devem estar desmaiando em
daguerreótipos,
rostos que viveram junto ao seu Puenta Alsina e em Cepeda.

Naquela época saqueou
para essa visionária rebelião que sua fé pedia, não que uma
fraqueza lhe impôs;
juntou um exército de sombras portenhas
para que o matassem.

Assim, no quarto que dava para o jardim,
Morreu num sonho pela pátria.
Em metáfora de viagem me contaram sua morte; não acreditei.
Era um menino, ainda não conhecia a morte, eu era imortal;
Procurei-o durante dias pelos quartos sem luz.”
(Borges, “Caderno de San Martin”, 1929, in: Obras completas v. 1, 1998, pp. 87-88)

A escrita de Borges sugere a memória como saque, como se fosse necessário, no derradeiro dia de nossas vidas, saquear um tempo vivido para erigir um sonho febril. A certeza de que se existiu com dignidade: a memória como mortalha. Certos homens – Borges e Bispo são desta estirpe – conseguem manter este estado febril ao longo de quase toda uma vida. Afinal, sabemos que é diante da morte que o assombro vislumbra. Bispo a tinha ao seu lado ao passo que Duchamp não: era um jogador de xadrez, pronto para uma próxima partida, sabia exatamente qual o próximo movimento até arrecadar o xeque-mate. A ironia de Duchamp é de soberba. Ele soube viver. Bispo, morrer.

Bispo, o homem que declarou pateticamente (ao menos aos nossos ouvidos), no documentário “O Prisioneiro da Passagem” de Hugo Denizart: “Eu escuto Jesus Filho e para mim é o bastante”. Sempre trabalhou no espaço da sacristia. Ou melhor, manteve-se por trás dos panos do normal e do moral. Duchamp, em contraposição, jogou com o sistema das artes, seja para questioná-lo, seja para ser louvado por ele na atualidade, numa espécie de refluxo previamente estudado, como numa jogada de xadrez.

Bispo, ao contrário, resistiu em ter suas obras levadas para à exposição de Frederico Morais, no MAM-RJ. Aquele, definitivamente, não era seu espaço. Sim, há uma dimensão estética inegável na produção de Bispo, é possível redigir centenas de escritos, proferir dezenas de palestras sobre isso. Todavia, enquanto não compreendermos a dimensão espiritual da obra de Bispo, a questão estética estará sempre prejudicada, subtraída de toda a sua extensão.

Bispo não sobreviveu. Em última instância, sempre “[...] falamos nós em lugar deles [os mortos], por delegação”, ao menos é o que dizia o sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (in: Agamben, p. 43). Arthur Bispo do Rosário, contudo, não se deixa falar tão facilmente por delegação. Talvez porque ele ainda não esteja completamente enterrado, conforme escreveu Sérgio Medeiros: “[...] ainda se encontra em sua câmara-ardente, à espera de sepultamento” (2007).

Em verdade, se possível fosse, adotaríamos em relação ao campo teórico em torno da arte de Bispo a mesma postura que Bartleby – enigmático personagem do livro homônimo de Herman Melville (2008) – dispensava às coisas práticas: “acho melhor não” ou “prefiria não fazê-lo”. Uma ação de desconcerto pela inércia: um não-ato que poderia, quem sabe, estabelecer uma pausa no turbilhão de iniciativas e apropriações que o sistema acadêmico e artístico vem forjando nas universidades e instituições culturais brasileiras sobre a vida e a obra de Bispo do Rosário.

Neste instante instalado no nada, veríamos algo de incrível no percurso desse homem, sua abnegação dirigida às coisas ordinárias em nome de uma dedicação radical a sua fé. Um nome, uma fala, uma obra e um corpo consagrados ao Além. É desse Além que não conseguimos falar. Objeto único e inalcançável impôs-nos o labor de Bispo.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio (2008).O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo.

BORGES, Jorge Luis (1998). “Caderno de San Martin”, in:Obras Completas. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Globo.

BURCKHARDT, Jacob (2003). Cartas. Rio de Janeiro: Topbooks.

BURROWES, Patrícia (1999). O universo segundo Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Editora FGV.

HIDALGO, Luciana (1996). Arthur Bispo do Rosario: O Senhor do Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco.

LÁZARO, Wilson (org.) (2007). Arthur Bispo do Rosário. São Paulo: Cosac Naify.

MEDEIROS, Sérgio (2007). Um Egípcio em Jacarepaguá: o eterno e o efêmero. Disponível em < http://www.centopeia.net/ensaios/78/sergio-medeiros/um-egipcio-em-jacarepagua-o-eterno-e-o-efemero/6>. Acesso em: 17 nov. 2007.

MELVILLE, Herman (2008). Bartleby, o escrivão – Uma história de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify.

PAZ, Octavio (2008). Marcel Duchamp, ou, O castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva.