Carlito Carvalhosa ou a respiração como uma tarefa efêmera de preencher e esvaziar | EDUARDO JORGE

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Carlito Carvalhosa. A soma dos dias, 2010.

 

Carlito Carvalhosa (São Paulo, 1961) é um artista que integrou o grupo Casa 7, no início dos anos 80, em São Paulo. Essa experiência coletiva (com outros artistas como Paulo Monteiro, Nuno Ramos, Fábio Miguez, Rodrigo Andrade) que enfatizava o gesto pictórico foi um modo de retomar a pintura no Brasil. Porém, o que significa retomar a pintura? Existem aspectos formais diante da questão ao mesmo tempo em que existe uma atenção para os acontecimentos mais recentes para a época, como as contribuições do neoconcretismo em torno do sensível na arte brasileira. Se o neoconcretismo produziu alterações estéticas dentro e fora do país, a questão do neoexpressionismo torna-se um núcleo para os integrantes da Casa 7, como se em um outro percurso o neoexpressionismo produzisse mudanças na percepção fora e dentro do Brasil. A atenção ao pictórico, sem dúvida, acontece de modo distinto da afirmação de um modo programático de pintura (o que pode ser lido como um dos mitos do concretismo via Waldemar Cordeiro – 1925-1973). Em relação ao grupo Casa 7, isso pode ser constatável na ênfase da linha em Paulo Monteiro (ou em suas esculturas), nos acúmulos de Nuno Ramos ou nas pinturas de Carlito Carvalhosa, por exemplo. Os contágios das experiências são múltiplos e o pictórico se expande no objeto, como se a pintura ganhasse corpo.

Diante da questão inicial, não resta dúvida de que o ato de respirar seja uma operação fundamental para a existência do corpo. Com uma afirmação que beira a tautologia (conectando diretamente a respiração com a vida), poderíamos arriscar e dizer que nesse sentido a respiração funcionaria como uma espécie de ontologia do corpo. Ontologia móvel talvez ou que existe pela troca. Se tomarmos o ar como aquilo que é essencial, note-se que esse essencial existe enquanto passagem: vai e vem, entrada e saída, inspiração e expiração. Mesmo sem conhecimentos fisiológicos aprofundados, alguém que observa um corpo que respira (o próprio, o outro) percebe que existe um ritmo na troca de ar. E o que seria o corpo senão aquilo que se sustenta em um ambiente por adição e subtração contínuas (de ar). Realiza-se, portanto, uma troca sensível com o ambiente, onde ganhos e perdas muitas vezes ficam no limite, empenhado na própria matéria.

Trazendo à tona a questão do sensível, em 1959, o crítico brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981) publica dois ensaios intitulados A problemática da sensibilidade. Pedrosa apresenta proposições que não se esgotam e pelo menos três aspectos devem ser considerados. O primeiro deles é o aspecto da comunicação: “O artista, ao realizar a obra, não faz nenhuma comunicação ao público do que se passa dentro dele, pois o contrário seria equiparar a forma artística a um sinal de tráfego que numa estrada avisa da proximidade de uma curva”[1]. Esse primeiro trecho de Mário Pedrosa toca diretamente em um dos pontos da fala de Carvalhosa, onde lhe perguntaram “como o tecido se movimentava de acordo com a música”. Se surge um atrito com o aspecto comunicacional entre artista-espectador pelo intermédio da obra, talvez seja porque há um desacordo entre ambos ou simplesmente existem expectativas preenchidas por quem as olha. Para usar uma expressão de Pedrosa, são “padrões perceptivos” que uma obra traz. Indo ao segundo ponto: “o que ela [a obra] traz é uma formalização de vivência desconhecida, uma organização simbólica nova, perceptiva ou imaginária”[2]. Pensando com Mário Pedrosa, os padrões perceptivos estão no germe de cada nova obra. São deles que se pode falar em alteração do olhar a partir de uma vivência desconhecida que a obra proporciona.

Assim, pensar na respiração como “vivência desconhecida” é tomar esse movimento involuntário e vital para as redes imprevisíveis que se armam dentro da obra de arte, como a de Carlito Carvalhosa. Se A soma dos dias (Sum of days), de 2010, é imprevisível, talvez seja porque as experiências que se acumulam vazam, escapam ou “evaporam”, restando apenas um rumor, traços ou simplesmente algumas camadas inacabadas de gestos. Diante de tais camadas, como não pensar em uma “busca do pictórico perdido (ou da cera perdida)”, tomando a paródia a Marcel Proust como possíveis ativações da memória involuntária diante de uma “vivência desconhecida” do pictórico. “Ceras perdidas” é uma série armada por Carlito Carvalhosa nos anos noventa, onde a questão da dobra, do pano e do movimento ressoa mesmo que de modo distinto em A soma dos dias.

É entre a perda (da cera) e a soma (dos dias) que se retoma Mário Pedrosa: “a obra de arte é a objetivação sensível ou imaginária de uma nova concepção, de um sentimento que passa, assim, pela primeira vez, a ser entendido pelos homens, enriquecendo-lhes as vivências”[3]. Seria dela, da obra, que os novos padrões perceptivos surgem fazendo com que forma e experiência não se separem, como não se separam o ar e o tecido, a respiração e o movimento e ainda a soma e a perda.

Por fim, entre o movimento de tecidos e o limite da opacidade com a transparência, soa aquilo que é tinta e o que é espelho, vidro, lâmpadas, manta asfáltica. Carvalhosa lida com a alteração de espaços. Seja o acidente natural de uma paisagem no Rio de Janeiro (Pão de Açúcar) ou o acervo da Fundação Eva Klabin, a inversão e a suspensão modificam o lugar pela presença de uma imagem invertida ou pela mobília suspensa e obras com uma iluminação intensa.  O quiasma de Carlito Carvalhosa parece ser este: “o que vem da coisa (o que ali estava) e o que vem dele em seu trabalho de artista”[4], como evidencia Paulo Herkenhoff em um dos textos de Nice to meet you (recém-editado pela Cosac Naify, pela editora italiana Charta e pela Associação para o patronato contemporâneo – APC).

Além de Nice to meet you, Carvalhosa está com A soma dos dias (Sum of days) em exposição no MOMA – NY até 14 de novembro de 2011, com curadoria de Luis Pérez-Oramas. No Brasil, em 2010, ela foi montada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria de Ivo Mesquita. Por fim, diante de uma breve discussão em torno de Carlito Carvalhosa, a conversa que segue com ele toca em aspectos bem precisos em sua obra: corpo e respiração.

 

 

Carlito Carvalhosa: uma conversa.

EJ: Carlito, o ponto inicial para nossa conversa que não parte do começo [como você iniciou sua vida como artista etc.], toca a questão do Projeto Respiração [em abril de 2011]: como você pensou e articulou sua intervenção de “clarear uma coleção que fica no escuro” na Fundação Eva Klabin? Trataria de um modo de “expulsar os fantasmas” de uma possível casa assustadora que fica à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas?

CC: Ali as obras estranhamente parecem ser tão significativas quanto a posição em que estão colocadas. Há uma simetria entre cadeiras, pinturas, porcelanas, vasos e lustres que pacifica e amortece. O excesso parece ser anulado pela ordem. A falta de luz é mais um elemento dessa espécie de torpor que a casa parece buscar, separada da paisagem, com as janelas fechadas à lagoa. É como se fosse uma casa que já visitamos, mas depois notamos que aqueles objetos caberiam em um museu. Todos parecem ter a mesma natureza (mas não têm): são coisas dispostas em ordem. Imaginei a invasão de outra coleção, vulgar, de copos comprados no centro da cidade, elevando a coleção original. Uma coisa parece sair de dentro da outra, os copos estranhamente parecem pertencer imediatamente àquele lugar. Notei que há algo mais forte que a escuridão. A casa parece falar de um outro lugar, daí os planos de luz que cegam, revelam e abrem uma outra dimensão. O segundo andar tem a luz toda rebaixada, retirei quase que completamente a luz de lá, imaginei que ela apareceria pela falta, como um material. Há histeria num andar e ausência no outro. As árvores no banheiro são como seres à espera, como os copos, o mundo lá fora. Imagino elas crescendo no banheiro, indiferentes.

EJ: É entorno da respiração que penso no ar em tua obra “A soma dos dias”. Em uma espécie de aritmética fantástica parece existir uma disritmia no jogo com o acúmulo que existe na proposta da instalação. Ou seja, os dias que passaram [e os visitantes] se convertem em rumor. O acúmulo se insinua, mas vaza, se desperdiça também [como se nota em outros momentos de tua obra]. Assim, junto ao projeto, a concepção, o que você pode dizer o que se perde, o que se ganha nessa soma?

CC: É exatamente isso: a soma vaza, se desperdiça e está sempre mudando. Essa diferença só gera um sentido se o espectador quiser assim. A pessoa pode sair do trabalho transformada, ou vazia. Podemos pensar em respiração, ou no ar transformado em material sólido. Como a respiração atravessa o corpo.

EJ: A relação dos títulos de obras (“melhor assim”, “você tem razão”, “já estava assim quando cheguei”, por exemplo) com os materiais utilizados criam um contraste formal?  Essa pergunta surge no contexto em que a piada e a anedota foi um elemento estruturante para obras modernistas e, talvez na contramão desta via, uma experimentação com lâmpadas, madeiras, postes, gesso e aço apontam para outra direção.  Mesmo assim, há uma predominância de registros de oralidade, bem como um tom anedótico.  Então, aqui, a pergunta se desdobra, você acredita no olhar para a tua obra pautado numa leitura mais atenta da cultura brasileira, seus traços de oralidade?

CC: Os títulos são muito importantes para entender a natureza dos trabalhos. Não acho que lâmpadas, madeiras ou postes sejam materiais "sérios", em oposição aos títulos, que seriam mais anedóticos. Esses materiais às vezes são tomados como tal, como essência, mas esse entendimento me parece limitado. Penso no nome que se dá às coisas, na transformação que o nome dá ao entendimento que temos delas. No caso da exposição "já estava assim quando eu cheguei", a percepção de que aquilo pode ser o Pão de Açucar transforma o trabalho. Assim como a visão da pedra natural é transformada pelo nome que se dá a ela. Eu acho interessante que esse momento de entendimento, antes (o sem nome) e depois, fique preservado no trabalho. Gosto de títulos que sejam não descritivos. Afinal essa é a maneira que vemos as coisas. A descrição sempre vêm depois. Me parece que os títulos devem estar à distância dos trabalhos. Não havia pensado na tradição de oralidade, mas de fato "dar nome" está dentro dessa tradição.

 

EJ: Em um possível contraponto com a pergunta anterior, seria a música um elemento importante, como a trilha feita por Philip Glass, a performance musical de Arnaldo Antunes ou ainda outras feitas por estudantes de música? Como essa percepção musical poderia se opor ou suplementar a oralidade em questão dos títulos e a tensão com os materiais?

CC: As performances nunca são trilhas feitas para os trabalhos, e os trabalhos não são representações da música ou das performances. Não há um desejo de "obra de arte total". São coisas independentes, postas em confronto. A percepção pode ser outra, a música como um não-concerto, onde o público não vê o músico, ou a performance ocorrendo contra, ou através de, um trabalho que não foi feito para ela. A resistência entre as coisas cria algo que não conhecemos.

EJ: De um modo geral, como você pensa o corpo nas suas esculturas e instalações? Essa pergunta toca o corpo ausente (daqueles que possibilitam a realização, mas que aparece em algumas imagens em Nice to meet you); a medida antropométrica concebida no projeto (e o jogo com a escala) e, por fim, o corpo do espectador. Enfim, como o corpo seria capaz de modular tua obra?

CC: O corpo é a medida do trabalho, meu trabalho muitas vezes lida com a perda de escala, e o corpo é o que sobra como referência. Gosto da idéia do corpo ausente, não havia pensado nisso, acho muito bom. A escala também é uma maneira de não se ver mais, de não experimentar (uma vez que já se sabe o tamanho das coisas). Mesmo o tamanho do corpo é algo que não conhecemos, é uma idéia subjetiva.

EJ: Mais que pensar a questão da influência, como foi a sua relação com o Expressionismo [tomando as experiências da Casa 7, inclusive], o Minimalismo e a Arte Povera?

CC: A pintura era o maior interesse que tínhamos na casa 7, mas já era uma pintura de natureza particular. A maior referência para nós naquela época era o Philip Guston, um artista do expressionismo abstrato que passou a fazer pinturas figurativas ainda nos anos 60, um trabalho que só foi compreendido bem mais tarde. É interessante que a pintura dele tem muita qualidade (no sentido tradicional da construção da superfície pictórica) e ao mesmo tempo uma figuração direta, despojada, que lembra desenhos comerciais, cartuns, e muito agressiva nos temas (bonecos da klu klux klan, botas, cigarros, latas de lixo). As duas coisas parecem estar em oposição, acho que isso nos atraía muito. Quanto ao minimalismo e à arte povera, meu interesse por eles surgiu um pouco depois, mas aí acho que há também um interesse por tudo.

 

EJ: A performance em tua obra, Carlito, seria um núcleo orgânico que movimenta o material ou seria uma dinâmica que surge da matéria e das dimensões utilizadas? Como um desenho de som faz parte do teu processo de investigação plástica com os tecidos, por exemplo?

CC: Já me perguntaram como eu fazia para que o tecido se movimentasse de acordo com a música. Olhando atentamente, parece que se movimenta mesmo, mas só quando há musica. Sem música, o tecido se movimenta da mesma forma, mas aí já não temos esse entendimento. O desenho do som existe em quem está lá - ou seja, existe se houver alguém ouvindo e vendo.

EJ: Mesmo partilhando com Nuno Ramos algumas experiências com materiais como ceras, espelhos, massa asfáltica, existe um outro posicionamento como apontou Lorenzo Mammì em torno da relação entre vocês. Nesse sentido, como você vê os pontos de contato e díspares entre vocês?

CC: Somos amigos há muitos anos, e começamos a trabalhar juntos.  Aquilo que há de mais intenso - que move o trabalho - é naturalmente diferente e não está muito ligado aos materiais utilizados. Talvez seja o que você chama de posicionamento. Tenho muito interesse no que tira do lugar o que já fiz antes, como se o novo tivesse que ter força suficiente para mover o que já fiz do seu lugar, para levar para outro lugar. A condição natural seria fazer sempre a mesma coisa, e não o contrário. Essa idéia me traz algum sossego.

 

EJ: Diante da matéria a ser utilizada como você se movimenta [se é que há um método], a partir dele: toma notas, desenha, cogita ou experimenta diretamente, enfim, como acontece seu contato entre projeto e realização, entre concepção e acidente?

CC: Eu dependo muito dessa distância entre projeto e realização. Eu faço tudo o que está ao meu alcance: notas, desenhos, projetos, maquetes, e cada uma dessas coisas parece trazer algo novo ao trabalho. Eu trabalho lentamente, gosto de experimentar. Na hora, no caso de um trabalho a ser feito em outro local, sempre surge algo novo: é para preservar essa novidade que os modelos e projetos me interessam, não para eliminar o acaso. Nunca tenho certeza como as coisas ficarão, para mim esse risco é importante. Eu já tive um atelier pequeno, limpo, com uma mesa  apenas, e isso não funcionava para mim. Ao mesmo tempo, não sinto necessidade de atelier muito grande, pois por maior que seja ele sempre será pequeno. O atelier precisa o tamanho suficiente para não ter escala - e isso não é muita coisa.

 


[1] PEDROSA, Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986, p.14
[2] Ibdem, p. 14-15
[3] Ibdem, p.15
[4] HERKENHOFF, Paulo. Já estava assim quando eu cheguei. Nice to meet you. São Paulo/Roma: Cosac Naify/Charta, 2011. p.182.