Uma arma carregada sobre a mesa: as performances de Tania Bruguera | LUCILA VILELA e VICTOR DA ROSA

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Para Pedro Bennaton

Bienal de Veneza, 15 de junho de 2009. Pavilhão Murcia, A sociedade do medo – Pavilhão da urgência. São 15h e logo começa uma performance de Tania Bruguera. A artista se posiciona diante do público, sentada, atrás de uma mesa, preparada para começar sua conferência. Em cima da mesa há dois objetos: um microfone e um revólver. Bruguera começa a leitura: o texto fala de arte, representação e responsabilidade política. Em um determinado momento, a artista aponta a arma em direção a sua cabeça; e dispara. Dispara três vezes e, no momento final da leitura, ouve-se o quarto disparo: é lançada uma bala ao céu. Tania Bruguera acaba de submeter-se a uma roleta russa.

De fato, trata-se de uma roleta russa. Bruguera garante que a bala e o revólver eram reais – e não há motivos para duvidar. Seja como for, um projétil de festim também causaria danos suficientes para justificar uma performance. A trajetória da artista, aliás, parece se ocupar justamente de uma derrocada do conceito de representação. E é desta posição que Autosabotage dá a sua resposta mais eloqüente – o corpo da artista está afinal implicado no processo de contingência mais definitivo.

A cena inteira da performance é construída como se nada estivesse acontecendo. Com exceção do revólver sobre a mesa, que é uma espécie de intromissão do real na esfera quase sempre representativa da arte – mas que diabos um revólver faz ali? – toda a configuração do espaço parece sugerir e repetir uma mesma impressão: nada irá acontecer. A disposição das cadeiras, a posição da mesa, a leitura um tanto monótona e tudo que acontece ao redor é construído como uma promessa de que, de fato, se trata apenas de uma leitura crítica. Depois do tiro, no entanto – que vai para o caminho errado, digamos, por sorte – é como se o acontecimento rompesse mesmo uma superfície. No Pavilhão do Medo, inclusive o curador procura impedir que a performance se realize.

Tania Bruguera cria contextos fortes de deslocamento e parece ser esta a maior arma de suas performances. Em um encontro organizado pelo Instituto Hemisférico de Performance e Política, na Universidade Nacional de Bogotá, a artista promoveu um encontro entre três pessoas envolvidas no conflito colombiano. Na mesma mesa, um paramilitar, uma “desplazada” e uma guerrilheira contavam suas experiências a partir da pergunta: “o que é um herói pra você?” Enquanto os testemunhos aconteciam, outro elemento perturbador ocupava o espaço: uma bandeja com cocaína passou inúmeras vezes no meio do público até os debatedores, como se fosse uma vernissage. Alguns consumiam, outros protestavam, outros simplesmente assistiam e uma ênfase no conflito estava refeita.

Desta maneira, ao inserir elementos politicamente incorretos, digamos, em situações politicamente corretas, a artista sugere uma tensão necessária para realmente dar voz ao conflito. Ou seja, um debate ou uma conferência podem ser proferidas em qualquer circunstância – por direito à democracia, como queira – mas na maioria das vezes o modelo de debates resulta monótono. Isso talvez aconteça justamente devido ao grau de aceitação ou passividade do público. Mas ao inserir no espaço de discussão elementos responsáveis pelo conflito, drogas ou armas – a entrada da cocaína em Bogotá funciona de um modo semelhante ao uso da arma em Veneza – Bruguera lança de golpe a questão provocando a reação do público. Da posição contemplativa, agora o público é testemunha e até mesmo cúmplice. Diante da seriedade com que trata arte e política, a artista assume inteira responsabilidade de suas performances, seja diante do consumo de drogas ou mesmo perante sua própria vida.

As intervenções da artista, muitas vezes, são também pautadas por uma espécie de crítica ao papel da arte: muitas de suas performances acontecem em Museus, mas o que há de diferença, podemos dizer, é o modo como estas ações se apropriam do imaginário, da cena e das redes de poder destes espaços institucionais para de algum modo ironizá-los. Ao entrar na Tate Modern, de Londres, em junho de 2008, o visitante era surpreendido por dois policiais devidamente uniformizados e montados à cavalo, que conduziam e controlavam – sobretudo controlavam – a visitação do museu. A tensão instalada no espaço era declarada e o desconforto tinha um nome: Tatlin's Whispers # 5, performance de Tania Bruguera.

Um dos procedimentos recorrentes nas ações de Bruguera, como foi dito, é o deslocamento, a associação. Em uma equação rápida: trata-se da extrema aproximação de duas forças que se rejeitam. Em outras palavras, a tensão deve consistir em um emprego de forças que o espaço institucional não pode suportar, evidenciando e tornando possível assim a imagem das interdições. De outro modo, é possível afirmar que Bruguera suspende as normas do Museu para recolocá-lo em cena segundo contratos de ordem muito precários. A artista desafia a instituição de modo assíduo ao questionar até onde seus limites podem chegar. Estas ações, enfim, vale dizer, não poderiam se realizar sem alguma coragem e uma boa habilidade de manobra institucional.

Na intervenção da X Bienal de Havana, por sua vez, em uma atuação direta no sistema de interdição que marca as práticas políticas no país, a artista constrói uma espécie de palanque para que as pessoas da platéia, que não eram poucas, quase todos cubanos, possam falar qualquer coisa sobre o país. Quer dizer, a marca de autoria da artista quase desaparece, sua assinatura – Tania apenas sugere o jogo, abre um contexto e assim esgarça uma situação política. Diversas maneiras de expressão, discursos e protestos, sempre acompanhados por inúmeras mídias de gravação, foram proferidos em cena junto com dois atores vestidos com uniformes de Ministério do Interior que colocavam uma incômoda pomba branca no ombro de cada orador.

É certo que a performance alcança, no mínimo, certa rasura na prática de censura cubana, mas o limite entre representar a rasura e tornar efetiva uma condição política ainda nos parece controverso; quer dizer, a liberdade acaba sendo possível apenas naquele contexto artístico, em uma condição de possibilidade muito restrita, a saber: diante do microfone. Em outras palavras, qual o limite da obra de arte enquanto dispositivo político? No meio de tantas manifestações, afinal, uma anônima que participa do evento, com uma frase mínima, parece recolocar um ponto de vista sobre as relações que se estabelecem ali: “que um dia a liberdade de expressão em Cuba não seja só uma performance”.

Embora não seja indiferente à idéia de arte, parece – pois a discussão mais imediata sobre arte política é quase sempre atravessada por um enunciado que não cansa de se repetir: isto não é arte – cada vez mais Tania Bruguera transita por lugares com alto nível de indefinição. Em muitas de suas entrevistas, por exemplo, Bruguera acentua a idéia de “autoria delegada” – quer dizer, de atuação com o outro – na tentativa de fazer tremer um dos conceitos mais definitivos da instituição de arte: o autor, a autoridade. No momento, aliás, segundo informações de seu Estúdio, como parte de seu trabalho artístico, Bruguera se encontra em trânsito entre Paris e Beirut, onde negocia a abertura de um partido político para os imigrantes. O senso comum pergunta: isto é arte? Poderíamos responder: pouco importa.

 

* Este texto foi escrito a partir de registros encontrados na internet; jamais tivemos a oportunidade de assistir uma performance de Tania Bruguera.