O desespero contemplativo | LUCILA VILELA

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Entrada do Museu D´Orsay | Entrada do Museu Vaticano | Foto do conjunto escultórico Laocoonte | Sala Van Gogh do Museu D´Orsay

A diversidade de adjetivos e interjeições que habitam a Capela Sistina tem proliferado consideravelmente nos últimos anos enriquecendo o vocabulário que paira nos ares divinos da grande obra de Michelangelo Buonarroti. De fato, escreve Roland Barthes, não há figura mais apropriada de histeria que o adjetivo. A fila de pessoas que durante horas acompanham o muro do museu da Cidade do Vaticano esperando ansiosamente a entrada na Capela denota como tem multiplicado o interesse na arte em um intrigante fenômeno de desespero contemplativo. Os rumores e flashs ruidosos são intercalados pelos seguranças que, em uma energia de guerra, lutam para impor a proibição de fotografias. A impressionante multidão que se comprime no espaço transforma a morada de Deus em um verdadeiro inferno.

Em um lugar escorregadio entre capela e museu, a Capela Sistina assume um caráter de culto ressaltado por uma epifania em estado de ansiedade. O valor do sagrado em relação à arte pode ser observado já nos anos 50 quando André Malraux, em seu livro A Psicologia da Arte, coloca: “o museu , que foi uma coleção, se converte em uma espécie de templo.” Uma das características atribuídas a esse fato é a atmosfera silenciosa, digna dos espaços de culto que é mantida também dentro do museu, exaltando cenicamente o respeito para a contemplação da arte. No entanto, hoje o silêncio da Capela Sistina é anulado por um estado de excitação e frenesi, provocado também pela tentativa de burlar o sistema que impede a fotografia – a importante prova de ter visto algo importante de ser visto sem saber muito bem explicar porquê. A Capela Sistina portanto fica na mais ambígua posição: a Capela se converte em Museu e Deus se converte em Arte.

Os visitantes que lotam grande parte dos museus europeus são, de fato, os turistas. Entretanto, o turismo cultural que antes era impulsionado por uma curiosidade histórica ou artística, hoje se define melhor como sintoma de uma espécie de síndrome, resvalando os anseios de notoriedade que atacam as pessoas dentro do sistema capitalista. A invasão dos museus que abrigam as obras mais célebres da história chega a ser um curioso elemento de análise. O interesse pela arte é tanto que as pessoas esperam horas em filas para se aproximar dos grandes mestres. É assim, pois não é possível escapar daquilo que tem que ser visto. Mas, diante das obras é necessário ter certeza de que valeu a pena esperar tanto. O por quê? Não precisa se preocupar, pois o museu “explica”. Atualmente os museus dispõem de toda a informação necessária para que o visitante possa se aproximar da obra, para “entendê-la”, mesmo que seja apenas nos instantes que precedem o esquecimento. Os ouvidos e o cérebro são turbinados por uma ansiada informação, anulando a escuta da obra em sua quietude. Os serviços de áudio-guia recentemente oferecidos pelos museus europeus garantem as informações que confortam o desespero da dúvida.

Os museus reais, escreve Maurice Blanchot em seu ensaio O mal do Museu, “esses palácios da burguesia onde as obras, que passaram a ser propriedade nacional, dão lugar a rivalidades e a choques de interesses, tem todo o necessário para degradar a arte confirmando sua alienação em proveito de certa forma de economia, de cultura e de estética...” O autor também discute o museu como espaço de morte, um mundo artificial e solitário onde não existe vida. Para Blanchot, “é precisamente no museu onde as obras de arte, retiradas do movimento da vida e separadas do perigo do tempo, se apresentam no conforto fechado de sua permanência protegida.” Assim, dentro da estrutura confinada do museu, os turistas ficam extasiados diante das obras, mas logo se encontram com uma certa frustração causada pela monotonia. Isso acontece pois a obra se mantém enquanto obra; se afirma enquanto arte. Talvez por isso, a frustração ou o tédio seja combatido pela criação do espetáculo. Daí o importante papel da fotografia dentro do turismo cultural. A fotografia – e ainda mais a digital – permite a criação do espetáculo; um espetáculo de luzes onde o protagonista principal é o próprio turista.


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Assim, para a alegria da maioria dos turistas existem muitos museus que permitem tirar fotos e vídeos preferindo investir em vidros protetores que correr um risco econômico ao deixar os turistas desiludidos. É certo que, para muitos é mais importante tirar uma foto ao lado Monalisa do que ver de fato a Monalisa. Falo agora da celebridade mais pop das artes: a Gioconda, de Leonardo da Vinci, pintada em 1507, que se expõe nas paredes do Museu do Louvre submetida a flashs histéricos de uma multidão frenética. Os grandes museus europeus, em sua maioria, adequando-se às necessidades do consumo capitalista, ainda oferecem suas lojinhas de réplicas e souvenirs para garantir a prova da experiência; além de permitirem as fotografias. Como bem observa Fernando Estéves González, em seu texto Narrativas de sedução, apropriação e morte, “o museu já é inimaginável sem a sua loja – de souvenirs -. Ainda mais, o museu é uma loja de souvenirs que tem expostos também os originais.” González então aponta para essa curiosa inversão de interesses, a experiência estética desinteressada já não basta para a massa turística que impregna os museus e isso se resolve com réplicas, fotos e tudo o que permite um possuir – confortado no consumo, na prova em matéria.

A figura do turista é, deste modo, conectada à idéia do ócio e do consumo; uma questão que foi abordada em 1996 pelo artista belga Francis Alÿs, residente na Cidade do México. Em sua obra “Turista” o artista se fotografou junto a trabalhadores que oferecem seus serviços na Plaza del Zócalo, praça principal da Cidade do México, ostentando um cartaz de “turista”. O contraste entre a figura do artista que posa de turista ao lado dos trabalhadores que vendem seus serviços joga com essa inversão de papéis, ou seja, o turista deve gastar dinheiro e não receber, se dedicar ao ócio e não ao trabalho. Francis Alÿs inverte os papéis causando um estranhamento, oferecendo um serviço nulo. Ou talvez, a fotografia possa ainda sugerir a questão de um curioso “trabalho turístico” , ironicamente, quando se considera que fazer turismo, hoje em dia, muitas vezes se converte em um trabalho duro para alcançar todas as imposições - obras e monumentos - que tem que ser vistas, transformando o passeio numa verdadeira maratona. Essa meta quase chega ao sofrimento das grandes peregrinações, castigo necessário nos percursos de ascensão. Enfrentar, por exemplo, a fila do Museo d’ Orsay ou da Capela Sistina pode valorizar a entrada do museu, convertido em espaço sagrado.


Above: Zé Lacerda, Museu de Arte
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Francis Alÿs utiliza um cartaz para discutir a posição do turista. Assim também, fazendo o uso de um cartaz onde está escrito “Museu de Arte”, o artista brasileiro Zé Lacerda questiona o espaço do museu, colocando-se nas estradas junto com os transeuntes que se encontram pedindo carona. Mostrar cartaz para pedir carona é comum em muitas estradas do pais, mas os cartazes, em geral, dizem o nome das cidades. Zé Lacerda, entre 2002 e 2003, realizou esse trabalho no Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre chegando a transitar não só nas estradas, mas também nas ruas urbanas, diante da praia ou até mesmo, com ironia, diante do próprio museu de arte. O artista aqui nos incita a refletir: onde está o museu? Quem o freqüenta? O que se faz em um museu de arte? Por acaso alguém passa por ali? E de novo, percebe-se a inversão quando se imagina o pensamento daqueles que passaram e viram o cartaz – vai praonde? É certo que a realidade dos museus brasileiros é bem diferente da realidade dos museus da Europa; no entanto em muitas situações, os artistas nos induzem a refletir sobre as questões referentes ao lugar da arte e seu público.

Perante a idéia do museu enquanto conservação da tradição histórica, a massa turística que invade os museus europeus tem a segurança de estar efetivamente diante de uma grande obra mascarando o vazio e o cansaço que o fizeram chegar até ali. Blanchot considera que “a arte há aceitado chegar a ser uma arte de museu: grande inovação e para muitos signo de um grande empobrecimento.” Hoje os museus que abrigam importantes obras históricas são intransitáveis aumentando a distância entre a arte e o público. Atualmente, pode-se perceber que a histeria que invade os setores de turismo cultural é alimentado e incentivado pelos museus; promovendo assim toda a superficialidade do sistema capitalista com seus emaranhados de informações publicitárias. Segundo Pierre Bourdieu e Alan Darbel, no livro O amor à arte, “ao designar e consagrar determinadas obras ou lugares (tanto o museu quanto a igreja) como dignos de ser freqüentados, as instâncias investidas com o poder delegado para impor um arbítrio cultural (...) podem determinar a freqüência com que essas obras se mostrarão como intrinsecamente, ou melhor, naturalmente, dignas de ser admiradas ou desfrutadas.” Desta maneira, o museu, como instituição, apóia-se nesse fenômeno para promover e alcançar um grande número de visitantes que atravessam salas e corredores anestesiados por lentes, interceptados por câmeras e afogados por adjetivos.

Bibliografía:

BLANCHOT, Maurice (2007) La amistad, Trad. J.A. Doval Liz. Ed. Trotta, Madrid.
BOURDIEU, Pierre y DARBEL, Alain (2003) El amor al arte. Los museos europeos y su público, Trad. Jordi Terré. Ed. Paidós, Barcelona
GONZÁLEZ, Fernando Estévez, "Narrativas de seducción, apropiación y muerte o el souvenir en la época de la reproductibilidad turística" in Revista Acto, sobre fantasmas (2008) Acto Ediciones, Santa Cruz de Tenerife.