O retrato do C.B. (Notas) | VICTOR DA ROSA

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No retrato do poeta Charles Baudelaire, pintado por Gustave Courbet em 1848, seu rosto aparece desviado para baixo – em direção a um livro e não em direção ao olho do outro (o nosso) que o olha. Baudelaire realiza a leitura de qualquer coisa que nos é desconhecida. Sua mão esquerda, tensa, o corpo levemente arcado, quase de perfil, parece marcar certa entrega do poeta ao livro – posição corporal que, de início, nos permite sugerir certa descontinuidade em relação ao gênero do retrato: corpo ereto, posição firme, representação da nobreza, olhos fixos. Algo no retrato está ausente. Estamos posicionados então diante de um corpo que, de todo modo, nos ignora e – sutil paradoxo então – ainda pousa para o nosso olhar.

De fato, segundo o relato de Walter Benjamin, o pintor reclama de seu modelo – porque certamente não se trata mais de um , senão de um conspirador (neste caso, pode-se imaginar um conspirador do próprio rosto). Afinal, toda questão parece ser esta: “ao pintá-lo, Courbet reclama que a cada dia Baudelaire tem uma aparência diferente”.(1) O poeta esconde seu rosto, portanto: tem o dom da dissimulação. Por outro lado, Benjamin ainda se refere a sua poesia como uma tentativa de descrever os olhos que perderam o poder de olhar – ou talvez o rosto que perdeu seus traços, sua identificação. Não será justamente esta falta que narra Courbet no retrato do poeta francês? De qualquer modo, entre incógnitas, Baudelaire se maquia. Escreve Benjamin, ainda: “Por detrás das máscaras que usava o poeta em Baudelaire guardava o incógnito” (2) Maquiagem, máscaras: nada.

Sabe-se do elogio que Baudelaire faz do uso da maquiagem no século XIX – e é conhecido também o impulso deste elogio: a procura de uma sensibilidade contra a natureza. No capítulo XI de seu ensaio dedicado a C. G., O pintor da vida moderna, Baudelaire escreve justamente: “A virtude (...) é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la.” (3). Estamos no interior de um dos problemas fundamentais da obra de Baudelaire: a natureza é grosseira e são as formas artificiais as únicas capazes de testemunhar a imaterialidade da alma; a função da maquiagem é o mais nobre, afinal: fazer desaparecer todas as falhas que a natureza impõe – o sublime está no efêmero, portanto.

Na seqüência deste capítulo, Baudelaire traça uma relação aparentemente casual e fortuita da moda com o feminino: “A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural” (4). E ainda, após traçar algumas relações da maquiagem com uma vida sobrenatural e excessiva, termina comparando a mulher com o artista. É preciso aceitar a idéia, de início, de que o sujeito masculino (se aceitamos provisoriamente estas categorias) não está fora da moda – em outras palavras: não se trata de estabelecer uma falsa dicotomia entre o masculino eterno e o feminino efêmero. Por outro lado, não devemos ignorar que esta referência apareça de modo tão direto. Trata-se então de aceitar o exemplo de Baudelaire e, sem qualquer juízo inicial, procurar estabelecer algumas aproximações entre o excesso, o dispêndio inútil e, finalmente, uma idéia mais ou menos incerta do feminino. Maquiagem, mather: máscaras.

Estas questões não são indiferentes a um teórico como Giorgio Agamben, que acrescenta um problema nesta discussão: a mercadoria – para ser mais preciso: o desafio que a mercadoria estava propondo para a obra de arte (5). Em linhas gerais, Agamben relê o impacto que uma exposição de produtos industriais – a Exposição Universal ou, ainda, a própria Torre Eiffel – causa na sensibilidade de Baudelaire. O que está em debate, segundo Agamben, é a libertação do valor de uso dos objetos. Ou em suas palavras: “Uma vez que a mercadoria tivesse libertado os objetos de uso da escravidão de serem úteis, a fronteira que separava desses últimos a obra de arte e que os artistas, a partir do Renascimento, tinham trabalhado incansavelmente para edificar, estabelecendo a supremacia da criação artística sobre o fazer do artesão e do operário, tornar-se-ia extremamente precária” (6). Quer dizer, a imagem do artista enquanto «único criador» está então abalada.

Mas o que confere a Baudelaire um caráter de singularidade no interior deste debate? – ou então: de que modo sua relação com o objeto pode ser pensada na contramão do século XIX? – em última análise: como estas questões podem afetar ou dar impulso a uma reflexão sobre a máscara? Ora, estas perguntas só podem ser respondidas parcial e paradoxalmente, pois nem mesmo Baudelaire formulou qualquer resposta unívoca – e talvez esta possa se apresentar como uma possível resposta mesmo, ou seja: a constatação de que, para se ausentar do binarismo da oposição, só é possível se posicionar diante da mercadoria se aceitamos um paradoxo. Serei mais claro: Baudelaire não se limita a reproduzir a cesura entre mercadoria e obra de arte. Pelo contrário: propõe uma aproximação extrema, excessiva. Daí é possível reler a relação de Baudelaire com a maquiagem, por exemplo. Cito Agamben, ainda:

“(...) o que confere à sua descoberta um caráter propriamente revolucionário é que Baudelaire não se limitou a reproduzir na obra de arte a cesura entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a criar uma mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria realidade da mercadoria enquanto tal” (7).

Baudelaire então leva a mercadoria a sua anulação na medida em que recorre aos próprios procedimentos da mercadoria. Desta maneira, por um lado, o artista não se subtrai à tirania do econômico e, por outro, não ignora a presença de um paradigma – uma fantasmagoria. Para Agamben: “O choc é o potencial de estranhamento de que se carregam os objetos quando perdem a autoridade que deriva do seu valor de uso (...)” (8). Estamos, portanto, diante de uma destruição. Na medida em que o objeto perde seu valor de uso, seu traço de identificação e função dentro de um sistema estável, enfim, sua própria condição para significar, então aparece o vazio – nas palavras de Agamben: “a máscara enigmática da mercadoria” (9). Em uma definição apenas: o ready-made. A arte passa a ter uma dimensão não apreensível, excessiva, nonsense.

Por fim, se o retrato enquanto gênero pode ser definido pela estabilidade, pela autoridade (enquanto pintura do Pai) ou mesmo pelos ideais de reconhecimento – mimese: referência ao real (pois a palavra retrato vem do latim , ou seja, copiar) – o rosto de Baudelaire talvez nos apresente, mais uma vez, uma mínima inflexão. Afinal, segundo o relato do próprio Courbet – embora não seja muito difícil filiar a pintura dentro de uma tradição retratística, ou seja, uma tradição que deve tributos à natureza – é impossível copiar Baudelaire tal qual . Haverá uma sutil descontinuidade: um segredo. Máscaras não são espelhos, afinal: são máquinas.

(1) BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 95.

(2) Idem, Ibidem.

(3) BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1996, p. 62.

(4) Idem, p. 64.

(5) AGAMBEN, Giorgio. No mundo de Odradek. In: Estâncias. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 73.

(6) Idem, p. 74.

(7) Idem, p. 75.

(8) Idem, Ibidem.

(9) Idem, Ibidem.